29 de out. de 2008

Realidade

Foi uma notícia na televisão. Um senhor encontrou uma valise cheia de notas de dólares, cerca de um milhão, e decidiu tentar encontrar o dono.

- Puxa, isso é que é caráter. - disse Karmem – Você não faria o mesmo?

- Ah, não sei... Não estou vivenciando a situação...

- Quer dizer que você tem dúvidas sobre o que faria?

- Acho que sim, quer dizer, quem é que pode saber quando ainda não aconteceu, né?

- Bem que minha mãe sempre diz que você é um bundão que não tem opinião decidida.

- Tá bem, eu digo. Eu ficaria com o dinheiro.

- Como assim? Você ficaria com o dinheiro todo para você?

- Um milhão de dólares? Mas é claro!

- Eu não acredito! Como você ia ter coragem? Vai que esse dinheiro é de algum aposentado, que passou vida inteira economizando para garantir a velhice...

- Pois então, eu faria um favor a ele, que não ia ter condições de aproveitar o dinheiro direito.

- Você seria capaz de uma barbaridade dessas? Coitado do velhinho! Podia ser seu avô!

- Então a coisa muda mais ainda de figura; se fosse o meu avô, eu estaria apenas adiantando a herança, ué! O dinheiro seria, por assim dizer, meu de direito! E além do mais, que aposentado no Brasil que consegue juntar um milhão de dólares? É mais fácil essa valise ser de algum traficante.

- Então, você levaria o dinheiro à polícia?

- Mas é claro que não! Nesse caso, menos ainda!

- Como assim, você ia ficar com esse dinheiro sujo?

- Não, eu ia gastar muito bem!

- O dinheiro que veio de pobres crianças inocentes coagidas pelo narcotráfico?

- E qual é o problema?

- Qual é o problema, você me pergunta? Muito problema! Eu jamais imaginaria que o homem que eu escolhi para ser pai dos meus filhos fosse tão egoísta! Sinceramente, não sei se essa relação vai dar certo.

- Mas o que foi que eu fiz de errado agora?

- O que você fez de errado? Primeiro, tenta extorquir dinheiro de um pobre velhinho aposentado, quiçá o seu próprio avô, e nem assim se sensibiliza, depois aceita propina de um traficante e ainda me pergunta o que fez de errado? Está tudo errado! Aliás, errada estou eu, de ficar com um homem capaz de deixar os outros passando fome para ficar com o dinheiro!

- Mas, Karmem, é um milhão de dólares!

- É, e pelo jeito para você mais vale um milhão de dólares do que eu.

- E o que você queria que eu fizesse com o dinheiro?

- Isso não importa. Você não tem que mudar só para me agradar. Não sou eu quem vive a sua vida. Aliás, começo a perceber que talvez seja melhor sair dela. E nem vem com esse braço! Vai lá, abraçar o seu milhão de dólares, vai.

- Karmem, você se dá conta de que nada disso aconteceu?

- Pior ainda! Quer dizer que nem no plano das idéias você é capaz de fazer o que é certo! Imagine na vida real!

- E quando é que na vida real aparece uma maleta com essa dinheirama toda?

- Não importa. O que importa foi o que você pensou.

- Tá, qual seria a coisa certa a se fazer, então?

- Não existe o certo, nem o errado. Mas isso mostra sua verdadeira personalidade.

Karmem já não me olhava nos olhos e uma discreta lágrima escorreu por seu rosto.

- Você sabe que tudo que a gente faz na vida um dia paga de volta. Acho que você ignora isso no seu ceticismo – continuou.

- O que você está querendo dizer? Que a maleta seria um teste divino?

- Se seria um teste, eu não sei. Só sei que você certamente não passaria. Aliás, é melhor mesmo você gastar o dinheiro todo em protetor solar fator 50, já que depois vai passar a eternidade queimando em frente a um jato de azeite quente, amarrado à grelha do inferno.

Karmem nunca exagerava.

- Olha, quer saber mesmo o que eu faria com esse dinheiro? – arrisquei, bolando um plano para sair do clima de discussão e entrar no clima de fazer as pazes.

- Vá em frente. Mas lembre que, em algum lugar, senão no meu próprio coração, todas as coisas ficam registradas.

- Pois eu iria contratar um avião para escrever “Karmem eu te amo” no céu. E depois esse avião iria descer e, despejando pétalas de rosa, eu pularia de pára-quedas dele para cair aos seus pés e convidá-la a subir num balão, que nos levaria até a Índia e casaríamos numa cerimônia indiana secreta. Pronto, é isso que eu faria com o milhão. Gastaria para concretizar todos os seus sonhos.

- Mas porque você não disse isso antes?

- Ah, era para ser surpresa. Mas agora eu estraguei tudo. Vou ter que pensar em outra coisa...

- Você faria tudo isso por mim?

- Mas é claro! Foi a primeira coisa que me passou pela cabeça.

E então o choro começou, mais forte ainda.

- Mas o que foi agora, Karmem? Você preferiria um casamento árabe?

- Como eu fui injusta com você, docinho! Você só ia querer me agradar?

- É só o que eu faço ganhando bolsa-auxílio de estagiário, imagina com um milhão...

- Isso é a coisa mais bonita que alguém já teria feito por mim! Como eu fui injusta! Eu sou uma monstra! Me perdoa!

E naquela noite, enquanto Karmem sonhava com seu casamento à indiana, cheio de aromas e símbolos orientais, eu fechava os olhos e pensava no super sabre de luz eletrônico com luzes e sons que eu compraria... Ah, se eu tivesse achado aquela mala!

24 de out. de 2008

Ciúmes da Madonna

Karmem fez questão no começo do namoro de esconder sua loucura de mim. Mesmo ela sabia que poderia me assustar e que suas chances de contar comigo para ser seu escravo particular diminuiriam se eu ficasse com medo demais para namorá-la. Levou quase três dias para que eu presenciasse a primeira das loucuras que estavam por vir.

Éramos colegas de classe na faculdade de jornalismo e estávamos ainda no primeiro ano. Além de não saber dirigir, eu nem sequer tinha carro ainda e a levei de ônibus para conhecer a minha casa, onde poderíamos ficar completamente à vontade, pois não haveria ninguém.

Karmem era só sorrisos e chamegos no caminho. O sorriso durou até que Karmem entrasse no meu quarto e fizesse pela primeira vez a feição que tinha o poder de congelar minha espinha. Literalmente. Eu sempre tinha que depois jogar um pouco de água quente para conseguir andar direito.

- Meu querido, o que é isso?

- Isso o quê? Ah, sim, é um pôster.

- Que é um pôster eu sei. O que eu quero dizer é como que você pode ter uma foto enorme de outra mulher pendurada na sua parede.

- É a Madonna, Karmem. Você sabe que eu sou fã.

- Era.

Foi tudo o que ela conseguiu dizer. Até hoje ainda tenho uma certa dificuldade de relembrar a cena, pois o trauma acabou fazendo com que eu esquecesse da maior parte. Só guardo flashes do que aconteceu, mas tenho certeza de que o pôster entrou em combustão espontânea apenas com o olhar de Karmem.

- Mas por que você está fazendo isso? Está louca? Vai incendiar o prédio!

Karmem estava neste momento ateando fogo e sapateando sobre a pasta na qual eu guardava recortes de jornal com a musa.

- Que absurdo! Você é meu namorado ou não é? Não vai ficar reverenciando outra mulher assim! Está pensando que eu tenho casca de barata?

Atrás da nuca de Karmem realmente crescia uma casca de sujeira, raramente vista a olho nu, pois estava coberta por uma camada intransponível de cabelo.

- Sangue.

- O quê?

- Sangue, Karmem. É sangue de barata a expressão...

- Sangue você vai ver jorrar se eu souber que você tem outra mulher em seu foco de atenção que não seja eu!

- A Madonna é só uma cantora, apenas uma mulher cujo trabalho eu admiro...

- E admira mais do que a mim, pelo jeito!

- Como assim?

- Não estou vendo nenhuma foto minha nas suas paredes!

- Mas eu não tenho nenhuma ainda...

- E se continuar assim nem vai ter. Ou você acha que eu divido qualquer espaço meu, seja na sua parede, seja no seu coração, com outra pessoa?

- Mas, linda, seja razoável...

Ser razoável estava além das capacidades de Karmem.

- Ela está a milhares de quilômetros de distância. É impossível que um dia eu vá ter algo com ela, não acha? Faria muito mais sentido você ter ciúme da Mirinha da esquina...

- E quem é essa? Você pendura fotos dela na parede também?

- Não, eu estava só brincando! “Mirinha” seria um nome hipotético para alguma vizinha.

- E estes CDs? O que são?

- CD é a abreviação de Compact Disk. Eles são usados para reproduzir gravações musicais. Há um aparelho que emite uma luz que se reflete em sua superfície, decodificando o código binário...

- Isso eu sei. O que eu estou perguntando é por que você tem tantos CDs da Madonna.

- Mas como você queria que eu a ouvisse cantando? Não tenho o telefone dela para ligar e dizer “Oi, aqui é um grande fã seu aqui do Brasil, você não quer cantar para mim? Ah, no banho? Então, aproveita a reverberação do toalete”.

- O meu ponto é que não estou vendo nenhum CD com gravações minhas aqui.

- Deve ser porque você nunca gravou um CD, Karmem!

- Você é muito bom para arrumar desculpas, hein? Resolvemos isso depois. Por hora, pode colocar todos os compaqui te disse no microondas.

Não se pode dizer que eu não tentei contornar a situação.

- Mas, Karmem, não é o microondas que toca música, é o aparelho de som. O forno no máximo toca aquela campainha para avisar que a comida está pronta.

- Não é para ouvir. Vamos derreter todos.

- CD derretido? Por quê, criatura?

Era a primeira vez que eu tinha um vislumbre de que Karmem não era humana. O melhor é que ela nunca se sentiu desconfortável por eu chamá-la de criatura.

- Se vamos ter um relacionamento, eu quero uma prova de amor. Como você não tem dinheiro para me dar uma jóia, muito menos me pedir em casamento romanticamente num restaurante nas ilhas gregas de frente pro mar, pode fazer pelo menos esse sacrifício por mim.

Eu tinha pela frente uma escolha complicada. As duas mulheres que mais influenciavam minha vida e tendo que optar por uma ou outra. E os CDs da Madonna, além de caberem no bolso, podiam ser tocados na ordem e maneira que eu quisesse, o que eu jamais faria com Karmem.

Recolhendo os restos das reportagens e fotos assassinadas e estripadas pelo chão, prometi a Karmem que não mais ouviria Madonna. Foi a primeira promessa quebrada de minha parte.

- Mas não vamos derreter tudo, né? Afinal, custaram dinheiro. Pode deixar que eu acho alguém na internet para comprá-los.

Foi a maneira que encontrei para salvá-los. Durante todo o resto do namoro, eu tratei de escondê-los. Se eu sabia que Karmem iria me visitar, lá ia eu colocar os pobrezinhos dentro da máquina de lavar, ou em qualquer lugar da lavanderia - onde eu sabia que ela jamais entraria.

Eu ainda acreditava que aquilo seria apenas uma brincadeira e um teste de Karmem. Que ela diria “Puxa, meu amor, eu sei o quanto ela representa para você e estava apenas testando o seu amor por mim. Vamos ver essa fita de clipes juntinhos agora, você merece”. Mas Karmem quase nunca mentia, principalmente sobre o que fosse para eu fazer.

- E esta outra foto aqui, na sua gaveta? Quem é essa mulher?

- Você reparou que ela parece comigo?

- Sim, mas quem é? Vai me dizer que você idolatra até mulheres assim tão mais velhas?

- É minha mãe. Ela mora aqui comigo.

- Bom, já que mora, você vê a cara dela todo dia, não vê? Não sei para quê guardar foto... Pode jogar fora também. Ou devolve para ela, afinal, está a uma porta de distância, certo?

Os meus olhos esbugalhados foram suficientes para que Karmem mudasse de assunto.

- Vamos resolver o problema de não ter nada gravado com a minha voz aqui. Cadê o seu gravador?

- Aí, na gaveta mesmo. Mas o que você vai fazer?

- Você não gosta da minha voz?

- Sim...

- Fique ali naquele canto, olhando para a parede e não se mexa.

Karmem pegou dois chumaços de algodão e, delicada como uma locomotiva, os introduziu em minhas orelhas. Fiquei olhando justamente para o espaço antes ocupado pela Madonna e que agora estava vazio, com as marcas de fita adesiva denunciando que alguém fora arrancado dali, por mais de uma hora. Nas poucas vezes em que tentei sair, ou olhar para trás, fui surpreendido com um ataque de livros, roupas, sapatos, qualquer coisa que Karmem encontrasse para atirar.

- Pronto, já podemos tirar isso e você pode virar. Olha, essa fita você só ouve depois que eu for embora.

À noite, relembrando dos acontecimentos, não pude deixar de rir muito com tudo aquilo. Chorar também. Coloquei a fita no meu rádio e fui surpreendido com o que ouvi. Karmem declamava poesia na gravação. Ok, a da batatinha quando nasce, mas o que se poderia esperar?

O pior é que aquele ataque de ciúmes ainda não tinha tido fim. Ele ainda persistiria na aula de retoques digitais em fotografia, na semana seguinte.

- O que é isso na sua tela?

- É o meu trabalho, Karmem. Eu estou fazendo desde o começo do bimestre, você sabe.

- Sim, mas, no começo do bimestre, nós ainda não namorávamos.

- Bom, mas o que isso tem a ver? A entrega é amanhã, eu já estou quase terminando. Foi até fácil de fazer, mas eu gastei muito tempo fazendo o seu, por isso tive que fazer esse assim simplesinho.

Tínhamos que fazer uma montagem no computador. Karmem teve uma ótima idéia para o seu trabalho. Ela quis transmitir uma mensagem de paz e união de povos. Para isso, colocaríamos os principais líderes mundiais lado a lado de personalidades da história famosos pelo trabalho social e luta pela paz, como Mahatma Gandhi e Madre Tereza, todos fazendo o sinal de paz e amor. Para Karmem era fácil ter idéias, pois era eu que as operacionalizava. Fui atrás, numa época em que a internet engatinhava, das fotos de todos que ela quis (quarenta e sete, pois era um número cabalístico ou algo assim), digitalizei um a um e me pus a trabalhar para que cada um deles tivesse os dois dedinhos levantados na mão direita. Ficou ótimo e eu até tirei, ou melhor, Karmem tirou nota dez, mas só me sobrou tempo para, no meu trabalho, me colocar beijando... A Madonna!

- Você está salvando isso na rede?

- Não, só aqui no disquete. Tem muita gente copiando trabalhos alheios na rede.

- Então com licença.

Karmem fechou o programa e retirou o disquete em silêncio.

- Você vai levar para imprimir para mim? Como você é atenciosa.

- O que você acha que aconteceria se a Madonna realmente beijasse você?

- Provavelmente sairia levitando do chão.

- Ah, é? Então vai levitar!

E lá se foi o disquete, arremessado pela janela do nono andar do prédio da faculdade. Mesmo sem mirar, Karmem conseguiu fazer com que ele caísse justamente dentro do carrinho de um pipoqueiro, onde derreteu na gordura quente.

Não sei quanto tempo fiquei em estado de choque. Via Karmem falando sem parar, mas não conseguia entender o que dizia. Só conseguia pensar na Madonna sendo cremada em meio aos milhos estourando.

- Karmem! Era o meu trabalho! Nós temos que entregar amanhã!

- Preocupe-se você. O meu já está pronto há um tempão.

- Eu sei, fui eu quem fiz!

- Você fez? Como você pode querer roubar o meu trabalho assim?

- Seu trabalho? Quem pesquisou as fotos, escaneou, arrumou os dedinhos desse povo todo? Foi você?

- Mero trabalho manual. O cérebro aqui você sabe que sou eu. Muito melhor do que a idéia de se colocar beijando aquela loura falsa, siliconada.

- Alto lá! A Madonna pode descolorir o cabelo, mas os seios são cem por cento naturais!

- Isso você deve entender mesmo, os seus são do tamanho dos dela!

- Cadê aquela foto sua vestida de dançarina de cabaré?

- Está na rede, por quê?

- Por que eu tenho que entregar alguma montagem em menos de vinte e quatro horas, ora essa!

- Ah, resolveu fazer uma montagem me beijando, é isso? Pois agora é tarde!

- Claro que não. Nós somos namorados, para quê fazer uma montagem disso, se podemos fotografar um beijo real?

- Então o que você vai fazer?

- Bom, você lembra que acabou sobrando uma imagem das suas? Eu achei quarenta e oito e você insistiu para que eu tirasse uma delas.

E foi assim que criei a imagem de Karmem fazendo um streap tese para o Dalai Lama. Foi minha única vingança contra a queimadora de Madonnas.

22 de out. de 2008

Clarinata da Rainha


Quando Elisângela ouviu a Clarinata da Rainha tocando, finalmente deu-se conta do significado dos acontecimentos que precederam sua subida ao altar. Não viu mais nada em sua frente.

As flores, a decoração, tudo que havia sido um martírio em mais de dezoito meses, passaram despercebidos.

Fosse um de seus eventos profissionais, teria fuzilado com os olhos um casal de convidados que foi de tênis. Mas naquele momento não. Estava sublime, sentindo uma estima principalmente pelo noivo, Caio, que seria seu companheiro dali por diante. O buquê, recolhido pela mãe, havia sido confeccionado pessoalmente por ele.

Do lado dos padrinhos, Carlos Charles tentava manter as lentes de contato que insistiam em sair do lugar com as lágrimas. O jornalista decidira combinar a cor dos olhos com a gravata de cristais.

A cerimônia transcorreu bem, não fosse o engasgo da noiva na hora de dizer 'Na riqueza e na pobreza'. Sua sugestão de texto, 'Na riqueza e no glamour e não me venha com opções diferentes disso', não foi muito bem aceita pelo padre.

Na hora do esperado 'sim', os convidados soltaram um suspiro coletivo. O padre também. E o pessoal da decoração, da banda e os pombos moradores das árvores em frente à igreja. Meses de pressão finalmente se dissiparam.

Elisângela estava casada! Saiu da igreja ao som de "My first, my last, my everything".

- Mais calma agora?

Perguntava Carlos Charles, já no salão.

- Agora? Mas eu sempre estive calma!

- Bom, eu estou.

- Ótimo. Até porquê, tenhos duas missões para você.

- Quais?

- Primeira, me ajudar a organizar o DVD do casamento.

- E a segunda?

- Conto com seu bom gosto para montar o quarto do bebê.

Diante do espanto do amigo, Elisângela revelou detalhes:

- Na confusão toda, esqueci de tomar a pílula.

- Acho que terei que fazer uma viagem.

- Não demore, então, pois só confio na sua ajuda.

- De quantos meses você está?

- Dois.

- Então vai levar sete meses a viagem.

- Para onde?

- Ainda não decidi!

- Não me enrole e não disfarce, que você vai amar escolher o papel de parede de bichinhos.

- Tomara que seja menina, porque a gente vai forrar tudo de rosa!

Carlos suspirou mais uma vez e se posicionou para ver o arremesso do buquê. Um braço mais comprido, de uma loira muito alta, levou vantagem e agarrou as flores assim que foram projetadas. A loira posicionou pétala por pétala em seu chapéu, sorrindo triunfante por algum motivo que só ela entendia. Algum tipo de simpatia, será?

O transcorrer da noite foi agradável e divertida, entre parentes e amigos, pois o casal só enviara convites a quem realmente lhes era precioso. Afinal, "Hipócrita, na minha festa de casamento, não", era a frase que Elisângela mais usara para a lista de convidados.

Dali por diante, Elisângela deixou de ser noiva, mas jamais abandonou seu desejo por fazer tudo à sua maneira e com a sofisticação que a natureza lhe conferiu.

8 de out. de 2008

Berebas

Uma de minhas atribuições enquanto namorado de Karmem era escolher e comprar todos os presentes para a família dela em ocasiões como Natal, aniversários, dia das mães e afins. Mas não podia ser qualquer presente. Tinha que ser criativo, diferente, original, algo que levasse a pessoa às lágrimas de emoção e ficasse para sempre guardado na memória. E também era Karmem quem assinava o cartão e entregava o presente (muitas vezes sem nem saber qual o conteúdo do embrulho) e ficava com o crédito.

E ela sempre me dava um prazo razoável para comprar as coisas. Como na primeira vez em que participei da festinha de um sobrinho que ela tinha no interior.

- Você já está vindo para cá?

- ‘Cá’ onde, Karmem? Onde você está?

- Como, onde eu estou? Já cheguei aqui em Cabritópolis.

- Cabritópolis? Onde fica isso? O que você está fazendo aí?

- Você esqueceu?

- Esqueci do quê?

- É amanhã o aniversário do meu sobrinho! Eu já estou aqui.

- Como, amanhã? Você não me disse nada!

- E precisa dizer? Todos os anos ele faz aniversário no mesmo dia!

- Mas, Karmem, não faz nem um ano que a gente namora, como eu ia saber?

- Oras, no ano passado a gente já era amigo e eu disse que vinha para cá por causa do aniversário dele...

Karmem não conseguia entender que alguma pessoa não tivesse guardado na memória um fim de semana sem ela, mesmo que nem a conhecesse, como se sua presença fosse essencial para o bom funcionamento de qualquer atividade na vida.

- Bom, de qualquer forma, você foi dispensada do trabalho por causa disso?

Todos os empregos de Karmem eram extremamente tolerantes em relação a horários e presença na empresa. Ela podia se ausentar, por exemplo, para passar a manhã com a cachorrinha que estava deprimida e se sentindo solitária. Por isso ela não compreendia porque eu tinha de bater cartão de ponto ou permanecer na empresa todo o horário de trabalho. Mas isso não vinha ao caso. O pior era a tarefa que viria.

- Você já comprou a bereba?

- O quê?

- A bereba. A criança está esperando!

- Eu tenho que levar uma bereba para o seu sobrinho?

- Não se faça de desentendido...

- Mas eu não estou entendendo mesmo...

- Eu falei que o menino gosta da bereba e que você ia trazer. Você sabe a quantos quilômetros estamos da capital?

- Acho que uns quinhentos, não é?

- Então, não tem bereba para vender aqui. E agora o garoto já está todo esperançoso, achando que você vai trazer para ele!

- Se é bereba que ele quer, eu levo uns dez quilos de chocolate e faço ele comer – vai nascer um monte de berebas e espinhas na pele dele...

- Só mesmo um monstro como você para querer intoxicar a criança! Você vai fazer isso com o nosso filho também?

- Mas a gente nem tem filho...

- E acho que nem vamos ter, por que se é assim que você imagina que vai cuidar dele...

- Podemos ser mais práticos?

Não podíamos. Karmem nunca era prática.

- Eu vou ter que ir até Cabritópolis?

- Não, se você der um jeito de que a bereba chegue aqui sozinha...

- São cinco horas de viagem, eu vou ter que ir direto daqui e nem trouxe mala, nem nada...

- Já que você não comprou a bereba ainda, aproveita, passa no shopping, compra uma malinha, umas roupas e vem.

Karmem era uma pessoa tão ligada à natureza que acreditava que qualquer produto, tal qual flores e frutos, brotavam nas prateleiras das lojas, bastando colhê-los e levá-los para casa.

- E afinal, o que é uma bereba?

- Você não sabe?

- Não...

- Não é você o expert em crianças, que passa o dia lendo revistinha?

- Eu divulgo uma fábrica de chicletes, revistas infantis são parte do meu trabalho...

- Vou fingir que acredito. E nunca leu nada sobre as berebas?

- Não, Karmem, não...

- Bom, se vira.

- Faz um favor, então? Chama o menino...

Tenho que reconhecer que o garoto foi a única pessoa da família de Karmem (além da cachorra) que gostava de mim. Ele adorava ficar no meu colo. Também porque ali ele podia soltar puns à vontade. Todas as outras pessoas pensavam que era eu e, quando eu tentava disfarçar, ainda me olhavam com aquela cara que diz “além de peidar, ainda vai tentar botar a culpa na criança, que absurdo!”.

- Oi, tio! A Karmem já me falou o que você está trazendo prá mim! Qual que você escolheu?

- Olha, o que foi que ela disse que eu vou levar?

- Ah, eu já sei! É um blerleice!

- Berleis?

- Não, blerleice!

- E o que é um blerleice?

- Blerleice é o brinquedinho que eu quero!

Pelo menos agora eu já sabia que era um brinquedo.

- E como é esse brinquedo?

- É um blerleice! Eba, ele vai me trazer um blerleice!

- Vamos fazer assim: você me diz como é o blerleice e como você brinca com ele, que eu digo se é o que eu comprei...

- Ah, mas é muito fácil! A gente usa o blerleice para brincar de blerleice mesmo!

Lá ia eu cavar a informação.

- E como é o blerleice?

- O blerleice é um blerleice, ué!

- Mas de que cor é ele?

- Ah, tem blerleice de todas as cores! Eu quero o blerleice amarelo, vermelho e roxo, que nem o do menino.

- Que menino?

- O menino que brinca de blerleice no desenho...

Pronto! Era um brinquedo de algum desenho animado da TV.

- E como chama o desenho que tem esse menino?

- Blerleice! Aí, o menino usa o blerleice com os amigos dele, que têm blerleice também, e os blerleices apostam corrida, batem uns nos outros, mas eu quero o blerleice do menino que é o principal, que é o mais forte...

- Você sabe me dizer pelo menos em que programa que passa esse desenho?

- É naquele que passa o blerleice!

- Mas você consegue me dizer o número do canal?

- Ah, eu não aprendi ainda número na escola... Mas eu passo o recreio inteiro brincando de blerleice, só que sem blerleice, porque não tem blerleice aqui em Cabrito... Eu vou ser o único da escolinha que vai ter blerleice! Eu te adoro!

Tive que desligar o telefone sem conseguir mais informações, pois meu chefe já estava fazendo o olhar que acusa os matadores de trabalho. Depois de pesquisar nos sites de canais infantis, finalmente achei o desenho. Blade Racers®. Uma animação na qual pré-adolescentes treinavam coelhinhos fofos para pilotar carros assassinos que disputavam corrida e assassinavam uns aos outros no trajeto com lâminas e armas de fogo saindo das laterais. Miniaturas desses carros (com lâminas de borracha e armas que disparavam água) eram comercializados como brinquedos para crianças. Eu havia desvendado o que era o ‘blerleice’.

Agora havia mais duas etapas da tarefa: comprar o brinquedo, acertar o modelo do protagonista e ainda conseguir chegar a Cabritópolis, o que levava cinco horas de viagem. Tive que executar o plano proposto por Karmem e passar pelo shopping. Para minha sorte (ou azar, pois isso possibilitava que Karmem sempre fizesse pedidos como esse) havia um localizado bem ao lado da estação rodoviária.

“Pelo menos”, pensei, “acaba de fazer uma semana que se passou o dia das crianças, vou encontrar os brinquedos com desconto”.

- Blade Racer®? De qual fase?

- Fase, como assim?

- O Blade Racer® tem mais de 50 fases diferentes, cada uma com mais de 300 modelos. Tem a Rocket Fire, a Speed Maximum, a Fast as Hell... De qual o senhor quer ver?

- Qual que está passando agora na televisão?

- Depende. Na TV aberta é a Quick Total Descontrol, mas na TV a cabo todas as outras estão sendo exibidas. Sabe que agora tem canais específicos para esse tipo de desenho? Alguns até passam com o som original, em japonês.

Resolvi arriscar e tentar a fase da TV aberta.

- Vamos ver os modelos dessa, então?

- Dessa estão esgotados. Aliás, de quase todos estão esgotados. O dia das crianças foi semana passada, sabia? Não tenho mais quase nenhum... Só esse modelo, o do Gart Jenron, pilotado pelo coelhinho Willy Fluffy.

Era prateado e não amarelo, vermelho e roxo, por isso concluí que não era o correto.
Depois de rodar por todo o shopping, não consegui achar nenhum Blade Racer® amarelo, vermelho e roxo. Mas eu não podia chegar de mãos abanando, ainda mais sendo que Karmem havia prometido que eu levaria o blerleice. Foi quando minha criatividade resolveu aflorar. Levei o Blade Racer® prateado mesmo e passei numa farmácia.

- Vocês têm esmalte de unha amarelo, vermelho e roxo?

Ainda bem que a moda era pintar as unhas de várias cores! Agora eu tinha apenas quinze minutos para comprar uma troca de roupa, uma mochila, o bilhete e ainda pegar o ônibus. Com Karmem eu realmente aprendi a fazer tudo na velocidade máxima, ‘Fast as Hell’.

No meio do caminho, toca o meu celular:

- Você está com a bereba ou não?

- É blerleice! Aliás, é Blade Racer®. Sim, eu consegui achar.

- Ótimo. A gente vai buscar na rodoviária, então, porque o menino está querendo muito...

- Mas, Karmem, eu ainda não pintei...

- Pintou o quê?

- Nada. A gente se vê quando eu chegar.

E lá fui eu, com muita paciência, fazendo desenhos de camuflagem no carrinho com os esmaltes, depois de abrir com bastante cuidado para não romper nenhum lacre de proteção. Ainda bem que eu tinha ainda trezentos quilômetros pela frente para completar a operação. Até eu me impressionei com o resultado final!

Chegando lá, de madrugada, o sobrinho de Karmem veio correndo ao meu encontro. Ele queria o brinquedo.

- Pronto! Tá aqui o seu ‘blerleice’!

- Blerleice? Tia Karmem, você não falou com ele?

- O quê?

- Você não leu a minha mensagem de texto?

- Não sei, o celular estava no silencioso, tinha gente querendo dormir no ônibus...

- Bom, ontem à noite estreou um desenho novo, o mongo dongo, ele agora não gosta mais de blerleice... E eu prometi que você ia conseguir trocar o brinquedo!

E a criança corrigiu:

- Não é mongo dongo, é monsblongo, tia!

Por sorte, o mesmo ônibus que havia me levado estava saindo de volta para São Paulo e eu pude retornar para procurar o novo brinquedo (que só estaria disponível nas lojas dali a três meses). Pelo menos, ninguém nunca descobriu que eu havia falsificado o Blade Racer®!