24 de out. de 2008

Ciúmes da Madonna

Karmem fez questão no começo do namoro de esconder sua loucura de mim. Mesmo ela sabia que poderia me assustar e que suas chances de contar comigo para ser seu escravo particular diminuiriam se eu ficasse com medo demais para namorá-la. Levou quase três dias para que eu presenciasse a primeira das loucuras que estavam por vir.

Éramos colegas de classe na faculdade de jornalismo e estávamos ainda no primeiro ano. Além de não saber dirigir, eu nem sequer tinha carro ainda e a levei de ônibus para conhecer a minha casa, onde poderíamos ficar completamente à vontade, pois não haveria ninguém.

Karmem era só sorrisos e chamegos no caminho. O sorriso durou até que Karmem entrasse no meu quarto e fizesse pela primeira vez a feição que tinha o poder de congelar minha espinha. Literalmente. Eu sempre tinha que depois jogar um pouco de água quente para conseguir andar direito.

- Meu querido, o que é isso?

- Isso o quê? Ah, sim, é um pôster.

- Que é um pôster eu sei. O que eu quero dizer é como que você pode ter uma foto enorme de outra mulher pendurada na sua parede.

- É a Madonna, Karmem. Você sabe que eu sou fã.

- Era.

Foi tudo o que ela conseguiu dizer. Até hoje ainda tenho uma certa dificuldade de relembrar a cena, pois o trauma acabou fazendo com que eu esquecesse da maior parte. Só guardo flashes do que aconteceu, mas tenho certeza de que o pôster entrou em combustão espontânea apenas com o olhar de Karmem.

- Mas por que você está fazendo isso? Está louca? Vai incendiar o prédio!

Karmem estava neste momento ateando fogo e sapateando sobre a pasta na qual eu guardava recortes de jornal com a musa.

- Que absurdo! Você é meu namorado ou não é? Não vai ficar reverenciando outra mulher assim! Está pensando que eu tenho casca de barata?

Atrás da nuca de Karmem realmente crescia uma casca de sujeira, raramente vista a olho nu, pois estava coberta por uma camada intransponível de cabelo.

- Sangue.

- O quê?

- Sangue, Karmem. É sangue de barata a expressão...

- Sangue você vai ver jorrar se eu souber que você tem outra mulher em seu foco de atenção que não seja eu!

- A Madonna é só uma cantora, apenas uma mulher cujo trabalho eu admiro...

- E admira mais do que a mim, pelo jeito!

- Como assim?

- Não estou vendo nenhuma foto minha nas suas paredes!

- Mas eu não tenho nenhuma ainda...

- E se continuar assim nem vai ter. Ou você acha que eu divido qualquer espaço meu, seja na sua parede, seja no seu coração, com outra pessoa?

- Mas, linda, seja razoável...

Ser razoável estava além das capacidades de Karmem.

- Ela está a milhares de quilômetros de distância. É impossível que um dia eu vá ter algo com ela, não acha? Faria muito mais sentido você ter ciúme da Mirinha da esquina...

- E quem é essa? Você pendura fotos dela na parede também?

- Não, eu estava só brincando! “Mirinha” seria um nome hipotético para alguma vizinha.

- E estes CDs? O que são?

- CD é a abreviação de Compact Disk. Eles são usados para reproduzir gravações musicais. Há um aparelho que emite uma luz que se reflete em sua superfície, decodificando o código binário...

- Isso eu sei. O que eu estou perguntando é por que você tem tantos CDs da Madonna.

- Mas como você queria que eu a ouvisse cantando? Não tenho o telefone dela para ligar e dizer “Oi, aqui é um grande fã seu aqui do Brasil, você não quer cantar para mim? Ah, no banho? Então, aproveita a reverberação do toalete”.

- O meu ponto é que não estou vendo nenhum CD com gravações minhas aqui.

- Deve ser porque você nunca gravou um CD, Karmem!

- Você é muito bom para arrumar desculpas, hein? Resolvemos isso depois. Por hora, pode colocar todos os compaqui te disse no microondas.

Não se pode dizer que eu não tentei contornar a situação.

- Mas, Karmem, não é o microondas que toca música, é o aparelho de som. O forno no máximo toca aquela campainha para avisar que a comida está pronta.

- Não é para ouvir. Vamos derreter todos.

- CD derretido? Por quê, criatura?

Era a primeira vez que eu tinha um vislumbre de que Karmem não era humana. O melhor é que ela nunca se sentiu desconfortável por eu chamá-la de criatura.

- Se vamos ter um relacionamento, eu quero uma prova de amor. Como você não tem dinheiro para me dar uma jóia, muito menos me pedir em casamento romanticamente num restaurante nas ilhas gregas de frente pro mar, pode fazer pelo menos esse sacrifício por mim.

Eu tinha pela frente uma escolha complicada. As duas mulheres que mais influenciavam minha vida e tendo que optar por uma ou outra. E os CDs da Madonna, além de caberem no bolso, podiam ser tocados na ordem e maneira que eu quisesse, o que eu jamais faria com Karmem.

Recolhendo os restos das reportagens e fotos assassinadas e estripadas pelo chão, prometi a Karmem que não mais ouviria Madonna. Foi a primeira promessa quebrada de minha parte.

- Mas não vamos derreter tudo, né? Afinal, custaram dinheiro. Pode deixar que eu acho alguém na internet para comprá-los.

Foi a maneira que encontrei para salvá-los. Durante todo o resto do namoro, eu tratei de escondê-los. Se eu sabia que Karmem iria me visitar, lá ia eu colocar os pobrezinhos dentro da máquina de lavar, ou em qualquer lugar da lavanderia - onde eu sabia que ela jamais entraria.

Eu ainda acreditava que aquilo seria apenas uma brincadeira e um teste de Karmem. Que ela diria “Puxa, meu amor, eu sei o quanto ela representa para você e estava apenas testando o seu amor por mim. Vamos ver essa fita de clipes juntinhos agora, você merece”. Mas Karmem quase nunca mentia, principalmente sobre o que fosse para eu fazer.

- E esta outra foto aqui, na sua gaveta? Quem é essa mulher?

- Você reparou que ela parece comigo?

- Sim, mas quem é? Vai me dizer que você idolatra até mulheres assim tão mais velhas?

- É minha mãe. Ela mora aqui comigo.

- Bom, já que mora, você vê a cara dela todo dia, não vê? Não sei para quê guardar foto... Pode jogar fora também. Ou devolve para ela, afinal, está a uma porta de distância, certo?

Os meus olhos esbugalhados foram suficientes para que Karmem mudasse de assunto.

- Vamos resolver o problema de não ter nada gravado com a minha voz aqui. Cadê o seu gravador?

- Aí, na gaveta mesmo. Mas o que você vai fazer?

- Você não gosta da minha voz?

- Sim...

- Fique ali naquele canto, olhando para a parede e não se mexa.

Karmem pegou dois chumaços de algodão e, delicada como uma locomotiva, os introduziu em minhas orelhas. Fiquei olhando justamente para o espaço antes ocupado pela Madonna e que agora estava vazio, com as marcas de fita adesiva denunciando que alguém fora arrancado dali, por mais de uma hora. Nas poucas vezes em que tentei sair, ou olhar para trás, fui surpreendido com um ataque de livros, roupas, sapatos, qualquer coisa que Karmem encontrasse para atirar.

- Pronto, já podemos tirar isso e você pode virar. Olha, essa fita você só ouve depois que eu for embora.

À noite, relembrando dos acontecimentos, não pude deixar de rir muito com tudo aquilo. Chorar também. Coloquei a fita no meu rádio e fui surpreendido com o que ouvi. Karmem declamava poesia na gravação. Ok, a da batatinha quando nasce, mas o que se poderia esperar?

O pior é que aquele ataque de ciúmes ainda não tinha tido fim. Ele ainda persistiria na aula de retoques digitais em fotografia, na semana seguinte.

- O que é isso na sua tela?

- É o meu trabalho, Karmem. Eu estou fazendo desde o começo do bimestre, você sabe.

- Sim, mas, no começo do bimestre, nós ainda não namorávamos.

- Bom, mas o que isso tem a ver? A entrega é amanhã, eu já estou quase terminando. Foi até fácil de fazer, mas eu gastei muito tempo fazendo o seu, por isso tive que fazer esse assim simplesinho.

Tínhamos que fazer uma montagem no computador. Karmem teve uma ótima idéia para o seu trabalho. Ela quis transmitir uma mensagem de paz e união de povos. Para isso, colocaríamos os principais líderes mundiais lado a lado de personalidades da história famosos pelo trabalho social e luta pela paz, como Mahatma Gandhi e Madre Tereza, todos fazendo o sinal de paz e amor. Para Karmem era fácil ter idéias, pois era eu que as operacionalizava. Fui atrás, numa época em que a internet engatinhava, das fotos de todos que ela quis (quarenta e sete, pois era um número cabalístico ou algo assim), digitalizei um a um e me pus a trabalhar para que cada um deles tivesse os dois dedinhos levantados na mão direita. Ficou ótimo e eu até tirei, ou melhor, Karmem tirou nota dez, mas só me sobrou tempo para, no meu trabalho, me colocar beijando... A Madonna!

- Você está salvando isso na rede?

- Não, só aqui no disquete. Tem muita gente copiando trabalhos alheios na rede.

- Então com licença.

Karmem fechou o programa e retirou o disquete em silêncio.

- Você vai levar para imprimir para mim? Como você é atenciosa.

- O que você acha que aconteceria se a Madonna realmente beijasse você?

- Provavelmente sairia levitando do chão.

- Ah, é? Então vai levitar!

E lá se foi o disquete, arremessado pela janela do nono andar do prédio da faculdade. Mesmo sem mirar, Karmem conseguiu fazer com que ele caísse justamente dentro do carrinho de um pipoqueiro, onde derreteu na gordura quente.

Não sei quanto tempo fiquei em estado de choque. Via Karmem falando sem parar, mas não conseguia entender o que dizia. Só conseguia pensar na Madonna sendo cremada em meio aos milhos estourando.

- Karmem! Era o meu trabalho! Nós temos que entregar amanhã!

- Preocupe-se você. O meu já está pronto há um tempão.

- Eu sei, fui eu quem fiz!

- Você fez? Como você pode querer roubar o meu trabalho assim?

- Seu trabalho? Quem pesquisou as fotos, escaneou, arrumou os dedinhos desse povo todo? Foi você?

- Mero trabalho manual. O cérebro aqui você sabe que sou eu. Muito melhor do que a idéia de se colocar beijando aquela loura falsa, siliconada.

- Alto lá! A Madonna pode descolorir o cabelo, mas os seios são cem por cento naturais!

- Isso você deve entender mesmo, os seus são do tamanho dos dela!

- Cadê aquela foto sua vestida de dançarina de cabaré?

- Está na rede, por quê?

- Por que eu tenho que entregar alguma montagem em menos de vinte e quatro horas, ora essa!

- Ah, resolveu fazer uma montagem me beijando, é isso? Pois agora é tarde!

- Claro que não. Nós somos namorados, para quê fazer uma montagem disso, se podemos fotografar um beijo real?

- Então o que você vai fazer?

- Bom, você lembra que acabou sobrando uma imagem das suas? Eu achei quarenta e oito e você insistiu para que eu tirasse uma delas.

E foi assim que criei a imagem de Karmem fazendo um streap tese para o Dalai Lama. Foi minha única vingança contra a queimadora de Madonnas.

Nenhum comentário: