29 de set. de 2008

Chapelão

De: Carlos Charles
Não eskeça o bukê!

Caio viu a mensagem e então lembrou-se de que havia se voluntariado para buscar o buquê de sua noiva, Elisângela. A cerimônia seria dali a algumas horas, tudo estava sob controle.

Ajeitou a cartola de cetim que improvisaram e anunciou aos amigos que precisava ir. O tio Almeida não quis deixar. Já eram oito horas da manhã e a despedida de solteiro ainda corria solta, como se tivessem acabado de chegar ao lugar.

Fora insistência do tio Almeida a festa. Não que Caio fosse avesso às comemorações (muito menos às mulheres), mas não fazia tanta questão assim. A verdade é que quem experimenta Elisângela (‘mulher’ é eufemismo, era uma versão melhorada do projeto) não se contenta com menos.

Mas foi mesmo assim, ouvindo a descrição do tio:

- Você vai ver sobrinho! Aquele lugar tem umas pequenas! Todas as stripers são universitárias!

- E isso serve para quê, elas dão dicas para passar no vestibular antes da gente comê-las?

Caio aproveitara a noite bebendo e contando anedotas, não traiu a confiança da noiva. Chegou a receber uma massagem das ‘universitárias’, regado a chantili, mas foi o máximo, além de ter o nariz empoado por um par de seios. Devidamente vestidos, claro.

Na saída, o tio ainda convidou algumas das garotas para irem com eles. Ele era assim, sedutor. As moças agradeceram, pois aproveitariam a carona. Era um boa pinta, e estava emocionado de ver o sobrinho com quase trinta anos casando. O próprio Caio achava que seguiria estilo de vida solteirão do tio até que conheceu a noiva.

E lá se foram, o tio dirigindo com uma das moças ao lado e o Caio com uma de cada lado no banco de trás.

A floricultura mantinha um registro severo de tudo que entrava e saía em relação a casamentos.

- O senhor assine aqui, aqui e aqui. E, por gentileza, tire os óculos.

- Ué, por quê?

- Fotografamos as pessoas que retiram buquês. Normas da casa.

- Nossa, mas precisa de tudo isso?

- Sem foto, não leva buquê. Ah, e o seu dedão vai aqui, por favor. Fazemos o registro da digital também.

- Vocês não acham um pouco exagerado?

- Já imaginou se o senhor perdesse o buquê da sua noiva?

- Prefiro nem pensar!

- Pois é, nós também não. Assim que o senhor assinar tudo, a nossa responsabilidade termina e respiramos aliviados.

O arranjo foi entregue dentro de uma geladeira de isopor quadrada, com as instruções de evitar abrir por algumas horas. Tudo para que Elisângela não casasse com um buquê de flores murchas.

Na volta, Caio trocou uma de suas acompanhantes pela do tio com a caixa devidamente alojada no chão do carro, para evitar pegar sol.

Quando desceu, o tio Almeida fez questão de perfilar todas as universitárias, pediu uma salva de palmas para o sobrinho e improvisou um discurso.

- Meninas, vocês estão diante de um dos homens mais dignos que já conheci.

Na família, todos sabiam de sua propensão a aumentar as qualidades dos conhecidos.

- Este rapaz, tão novo, é um dos médicos e engenheiros mais importantes do nosso tempo!

Caio só tinha o diploma de colegial técnico, mas conhecia os exageros do tio.

- Foi ele quem descobriu a cura para a síndrome de Aquiles, uma doença gravíssima que ataca os calcanhares, responsável por tantas calamidades! Vocês sabiam que foi isso que matou a princesa Diana?

- Ué, ela não morreu num acidente de carro?

- Se o motorista não tivesse essa enfermidade, ela estaria viva até hoje!

As stripers choraram, emocionadas, e aplaudiram, com sinceridade. No final, ainda encheram Caio de beijos na testa, nas bochechas e o deixaram de marcas de batom. O tio Almeida fez questão de abraçar uma a uma antes de entrarem de volta no carro e as presenteou como uma flor cada uma em agradecimento pela maravilhosa última noite de solteiro que haviam propiciado ao sobrinho.

Caio entrou em casa e só quis dormir. Acomodou ao isopor num canto fresco da casa. Estranho, ele tinha a nítida impressão de que quando havia pegado na floricultura havia uma fita adesiva lacrando a caixa. Bom, depois de tantas horas sem dormir, a gente imagina cada coisa!

Horas mais tarde, foi despertado por Elisângela, que, aos berros no telefone, exigia seu buquê, pois já estava praticamente pronta.

- Mas meu bem, ainda faltam três horas pro casamento... Não, ainda não tomei... Sim, já estou entrando... Aguarde que eu já chego!

O noivo é sempre mais prático: banho, barba, desodorante, terno e gravata depois, já estava pronto para a cerimônia. Tudo certinho.

Por curiosidade, resolveu abrir e dar uma espiada no buquê. Sabe como é. Podia estar meio torto, melhor ver antes do que entregar para Elisângela.

E foi então que o raio de mil watts acertou em cheio sua cabeça. A caixa estava vazia. Inexplicavelmente vazia. O interior tão solitário quanto Caio ficaria se não levasse o buquê.

“Mas como é possível? Eu mesmo vi a garota da floricultura embalar aquele emaranhado de flores brancas e verdes! Iguais às que...”

Sim, o Tio Almeida abrira a caixa de isopor pensando que ela guardava cerveja, mas, quando vira as flores ali, desatou os nós e as deu para as meninas da noitada. Tão gente boa, elas mereciam!

Sem saber o que fazer, Caio desceu para o jardim do prédio e procurou por algo que as substituísse. Viu, ironicamente, apenas uma plantação de ‘marias-sem-vergonha’. Era o único jeito. Amarrou um punhado delas com um cadarço antigo e enfiou na caixa original da floricultura.

“Vou pôr a culpa neles. Diacho, eles me fotografaram segurando o buquê, não vai colar!”.

Seguiu assim mesmo para o salão onde Elisângela fazia o dia da noiva e, sem olhar para trás, rumou para a igreja. As marias-sem-vergonha o fariam ganhar tempo até chegar lá e arrancar alguns dos arranjos da igreja e montar um novo buquê!

Caio suava frio. Todos os amigos o apontavam:

- Nossa, ele deve estar emocionado!

Estava sim, pois o padrão de flores da igreja era diferente do buquê. Elisângela não queria entrar com um item parecido em suas mãos, o fator surpresa era o mais importante em tudo: vestido, grinalda e, claro, buquê.

- Sua gravata está torta, me deixe arrumar. Deu tudo certo, né? Hoje acaba o seu e o meu martírio!

Desabafou Carlos Charles, melhor amigo da noiva, cujo celular logo tocou.

- Alô! O quê? Como assim? Não é o mesmo? Tem só um monte de mato?

Conhecendo sua noiva, Caio começou a planejar mentalmente mudar-se para a África naquele instante. Mas preferiu olhar em volta, como se a solução fosse brotar na sua frente. E foi o que aconteceu. Tomou o celular das mãos de Carlos e disse:

- Meu bem, desculpe a brincadeira! Eu queria só nos descontrair... Você vai ter o seu buquê quando chegar aqui. Confia em mim? Sim, o Carlos está fazendo que sim com a cabeça...

A segunda surpresa do dia foi ver as mesmas flores ali, zanzando pela nave da igreja, alocadas num chapelão. Laleska, grande amiga de Carlos Charles (vide "Duelo de Grinaldas"), trajava um discreto vestido, mas fizera questão de um chapéu bem grande, todo florido. Estranhamente, com o mesmo tema do buquê de Elisângela. Mas muito propício, pois Caio surrupiou sorrateiramente o adereço por trás e tinha o buquê de volta às suas mãos!

23 de set. de 2008

Domingo como outro qualquer

- Por que você não gosta de ir ao teatro, meu querido?

O comentário de Karmem despertou uma série de lembranças. Quase todas da primeira vez em que fomos ao teatro. Por “Teatro popular, entrada gratuita”, leia-se: “agüente esperar mais de três horas na fila e decidiremos se você merece assistir à peça”.

Chegamos cinco horas antes do início da peça (isso porque eu adiantei todos os relógios da casa de Karmem em mais de oito horas).

- Ah, meu cumprido, não acredito que você me enganou... Mas tudo bem. A gente fica aqui, namorando, né?

- É... Mas entenda que eu fiz isso para a gente pegar os melhores lugares.

Realmente, não havia mais ninguém na fila e ficamos namorando. Geralmente eu tinha cerca de vinte minutos de beijos intensos que calejavam a língua até que Karmem começasse a reclamar de alguma coisa. Ela queria sentar. Queria água. Queria ir ao cabeleireiro. Queria comprar um par de sapatos. Queria que eu pagasse pelos sapatos e pelo cabeleireiro. Recusei um a um, explicando que não era possível sair da fila, pois logo os seguranças passariam distribuindo as senhas. Mas ela esperou até que a fila já tivesse pelo menos cinqüenta pessoas para me fazer o pedido mais esdrúxulo do dia:

- Milococo, preciso peidar. Você assume?

- Como?

- É, já que eu tô vendo que você não vai me deixar sair para ir ao banheiro, vou ter que soltar aqui mesmo, mas não quero passar vergonha.

- E você quer que eu faça o quê? Que comece a gritar: “gente, fui eu!” quando o pessoal sentir o cheiro?

- Não, seu bobo. Basta fazer desesperadamente cara de quem está querendo dizer que não foi, mas não consegue achar um jeito de dizê-lo. Entendeu?

- Você não prefere ir ali, perto daquele gordinho?

- Por quê?

- É a regra principal de quem desejar soltar pum em público, ficar ao lado de algum gordinho. Todo mundo vai achar que foi o gordinho e não você. Existe uma crença coletiva, baseada na hipótese de que todo gordo come mais, que acredita que as pessoas brancas, heterossexuais, de classe média e, principalmente, magras não liberam gases intestinais. Puxa, isso deveria ser ensinado na escola – salva a gente de muitas situações embaraçosas.

- Mas e por que você acha que eu só faço isso quando você está do meu lado?

- Você não está querendo dizer que...

- Sim...

- Não! Eu sou o gordinho! Tudo bem, pode soltar...

- Tarde demais, agora já foi.

E Karmem fez cara de quem está assistindo a um concerto de violinos enquanto eu, surpreso, tentava desesperado dizer com o olhar “Não fui eu! Não fui eu!”, o que só fez com que todos me atribuíssem a culpa.

Felizmente a fila era a céu aberto e logo aquilo passou. Mas não as vontades de Karmem.

- Olha aqui, eu já não agüento mais! Vou comprar uma garrafa de água ali na padaria da esquina.

- Mas Karmem, faltam só três horas e meia para começarem a dar as senhas!

- Dá tempo, então, é rapidinho...

- Mas e se começarem a dar as senhas antes?

- Você diz que eu fui só ali comprar a garrafinha de água e já volto, ué. O que tem de difícil nisso?

- Você não conhece os seguranças daqui, Karmem! Eles foram treinados para não deixarem nem a própria mãe furar a fila! Quando alguém diz que está esperando outra pessoa, eles disparam um cronômetro e aguardam por trinta segundos! Se o esperado não aparece, eles levam o que está esperando para um quartinho nos fundos do teatro...

- E o que fazem com ele?

- Não se sabe. Ninguém nunca voltou para contar.

- Ah, não quero saber! Eu vou só até ali, vai dar tempo, e você fique esperando aqui e vê se finge que é macho e pega a senha para mim se o bundão do segurança passar.

- Karmem, não! Não vá!

Para minha surpresa, Karmem voltou. Mas não para ficar:

- Me empresta seu cartão? A minha carteira ficou na outra bolsa...

Quando um homem sabe dominar a mulher que tem, dá-lhe ordem de parar com frescura e deixar de ser folgada. Assim, eu disse:

- Claro, docinho. Toma. A senha você já sabe, né?

Cento e quarenta minutos depois, comecei a questionar se teria sido uma boa idéia deixar Karmem solta com o meu cartão. Concluí que não quando vi os seguranças começarem a dar as senhas. Três deles, quatro, se contarmos com o dobermann que vinha junto com rosnando para o pessoal da fila, todos mais altos do que eu, com os cabelos raspados à máquina e uma discreta suástica tatuada na nuca. Todos, inclusive o cachorro.

- Eu estou com a minha namorada... – balbuciei.

- Onde ela está? - gritou um deles.

- A-ali, c-comprando ág-gua...

O segurança ergueu o punho e eu fechei os olhos para só ouvir um ‘tic’: o cronômetro estava correndo!

Para minha sorte, Karmem possuía o estranho dom de aparecer nas horas certas – nunca na hora marcada, entenda bem – e surgiu atrás dele. O cronômetro foi parado e recebemos as senhas.

- Ufa! Mas o que foi que aconteceu? Por que demorou tanto? E cadê a água?

- Água? Ah, a água! Já tomei. Sabe, foi a primeira coisa que eu fiz, comprei a água lá na padaria. Aí, quando eu estava voltando, vi aquela loja de sapatos que estava em promoção...

- Sapatos? Mas não tem loja de sapatos no caminho até a esquina!

- Eu sei, é que eu me enganei, acabei saindo pela porta da outra rua e fui seguindo em frente mais ou menos uns sete ou oito quarteirões até me dar conta de que não estava na Paulista... Aí, já viu, né? Ainda bem que o comércio agora abre aos domingos!

E de fato eu via. Via cinco sacolas em suas mãos e imaginava a minha conta às moscas no banco.

Mais alguns minutos e finalmente conseguimos entrar na sala. Sentamos nos lugares numerados depois que consegui convencer Karmem de que G-50 não dava no mesmo que J-05. Senti as pernas descansarem por algum tempo e continuamos com os beijos de garganta até ouvirmos uma voz fininha, na fileira de trás:

- Puxa, assim eu não vou conseguir enxergar...

Karmem não gostou do comentário e fez outro, fazendo questão de falar alto para a moça ouvir:

- Essa sala é tipo estágio!

- Estádio, Karmem! Estádio!

- Ou isso! A fileira de trás é mais alta que essa, eu que não vou ficar me abaixando só por que uma pigméia resolveu vir ao teatro! E onde já se viu ficar reclamando dos outros? Por que não cresce e aparece? – tudo isso sem olhar para trás.

Como a curiosidade me é mais peculiar que à Karmem, olhei. E morri de vergonha. Com as sacolas nas mãos, tentei dizer a Karmem de uma característica (marcante!) da moça que sentava atrás dela. Fui apontando para as letras nas sacolas e soletrei A-N-A.

- Ana? Quem é Ana? Você conhece ela? É sua amiga?

- Karmem, o segundo ‘A’ tem til.

- Tio?

- Não, til!

- Ana é a mulher do seu tio?

- Não, Karmem, é uma anã!

Os grandes olhos de Karmem pareciam brilhar. Eu estava prestes a descobrir a estranha reação que os anões tinham sobre Karmem. Desde que os vira pela primeira vez, na Montanha Encantada, quando tinha três anos e saiu do barquinho para correr até os anõezinhos da Branca de Neve, Karmem sentia-se obrigada a esticar o braço, tocá-los no nariz e soltar uma gargalhada de muitos decibéis. E foi o que ela fez. Depois, coube a mim pedir desculpas, enquanto Karmem se ajeitava para permitir a visão da peça à anãzinha e tentava parar de rir.

O terceiro sinal soou e a peça começou. Perto do que já tínhamos vivido até ali só naquele dia, a peça foi tediosa. Ela retratava uma outra visão de Hamlet, focando na personagem Ofélia, com um time de vinte atrizes, cada uma interpretando uma face da personagem, entende? Não demorou para Karmem fazer palhaçadas. Pular na cadeira. Introduzir canudinhos no nariz. Depois tentar colocar os canudinhos na minha boca. Pedir para eu engolir uma bala achada no chão do teatro. Ameaçar rir da anã outra vez.

Menos de quinze minutos de peça e as luzes se acenderam. Os seguranças do teatro voltaram, desta vez com três dobermanns. Nos levaram até um quartinho nos fundos, iluminado apenas por uma lamparina a querosene.

- Então, vocês estavam rindo numa peça trágica?

Como eu já disse, Karmem tinha muita sorte. Naquela hora, vimos um sujeito, com longas barbas e cabelos, como se não os cortasse há anos, sair correndo de um canto escuro do quarto, com correntes nas mãos, e gritando:

- Mas eu juro que ela só foi no banheiro! Bando de loucos! Aposto que a peça já acabou!

- É o Algemiro, de novo! Peguem-no!

E saíram todos, seguranças e cachorros, com aparelhos de dar choque nas mãos, atrás do Algemiro, que eu desconfio que tenha ido assistir a uma peça com Cacilda Becker algum dia. Karmem, que sempre teve mais reflexos do que eu (vai ver por isso passava tanto tempo em frente ao espelho), agarrou minha mão, as sacolas e saiu correndo.

Ofegante, entramos no metrô para ir embora.

- Desculpa, Karmem, deu tudo errado...

- Tudo errado? Mas eu adorei! Vamos de novo no domingo que vem?

Meu único consolo foi pensar na lição que eu havia aprendido muito bem naquele dia e concluir “Bom, já que eu vou levar a culpa mesmo, vou aproveitar e relaxar”.

- Nossa!

- O que foi, Karmem?

- Acho que soltei um pum sem perceber!

- Será?

E fiz cara de quem está esperando o elevador.

10 de set. de 2008

Conversa com meus botões

Sempre achei curiosa a expressão conversar "com os meus botões". Não sei de onde vem a expressão (neta de "os colarinhos da vó", talvez?), mas imagino o perigo que ela representa: os botões teriam a capacidade mediúnica ou telepática de ouvir os nossos pensamentos. E por que gostamos de tê-los como ouvintes? Oras, a resposta é clara: porque os botões não têm o menor senso crítico e, ainda que o tivessem, não têm meios de expressá-los.

Lembro da vez em que cheguei a uma entrevista de estágio duas horas antes do combinado (nem a faxineira tinha chegado) e encontrei o presidente na entrada da empresa. Ele, cuja barriga só não era maior que o próprio ego, desatou a falar:

- Então, você faz faculdade? Pois é, eu já fiz faculdade e blá, blá, blá...

Por duas horas concordei com a cabeça, fiz "ã-hã" algumas vezes e pensei "Acho que não vai rolar. O cara deve estar pensando que eu sou um retardado, ou mudo, ou fanho... Não abri a boca praticamente". Quando chegou a entrevistadora, a surpresa:

- Bom dia, Fulana. Pode contratar esse cara - disse ele.

- E por quê?

- Ele é muito bom de papo!

Por quase dois anos em que estagiei na empresa, servi de ouvinte. Desconfio que, cada vez que os botões de enchiam de escutá-lo, ele me chamava. Diga (ou pense) a verdade - é bom ter alguém que nos ouve o tempo inteiro sem nos interromper.

Agora, pare para pensar no que são obrigados a ouvir os botões. Cada pensamento seu. As promessas nunca cumpridas "ah, mas nunca mais ninguém me diz isso", "a partir de hoje, vou usar os cotonetes sempre que tomar banho", "esse mês eu não vou gastar mais nada - chega de pré-datado!" (num dia 7). As resoluções que nunca tomamos "Mas esse ano, eu largo tudo e vou ser pescador de camarão em Minas Gerais (ignorando que você não consegue nem pegar o peixinho dourado do aquário com o coadorzinho de leite e que Minas Gerais não tem mar)". Isso sem falar nas grandes questões filosóficas e socias "mas eu não entendo por que o governo não pede para que todo mundo da classe média guarde os copinhos de iogurte e plante feijões com algodão! A fome seria erradicada em quatro meses..."

Sim, você estava lá, pensando em tudo isso e os botões ouvindo, com um sorriso de desdém ou com rostos entediados e você nem percebeu.

Vamos traçar um outro cenário - no qual os botões tenham voz. São feitos de casca de coco transgênico ou fruto da brincadeira de algum mago chegado a traquinagens - escolha a alternativa que mais lhe agrada.

O cidadão está calmamente pensando a caminho do trabalho "ah, mas de hoje não passa! Vou dizer tudo o que eu penso e aí..." Mas não consegue concluir o pensamento e ouve um risinho "Hi, hi, hi... Até parece!"

- Mas quem está rindo?

"Oras, quem, seus botões!"

- Botões?!?

"É! Ou você acha que a gente ia agüentar ficar ouvindo esse monte de asneiras sem nunca retrucar? Já basta tudo que a gente agüenta aqui embaixo..."

Perdendo totalmente a noção do ridículo, o sujeito prossegue a conversa:

- Como assim, agüentar? O trabalho de vocês nada mais é do que ficar aí,

pendurado numa casinha...

"E você acha que é fácil numa quarta-feira?"

- O que é que tem quarta-feira?

"Feijoada, meu caro, feijoada. E a sua barriga tentando escapulir para fora da camisa e a gente segurando a onda. Toda quarta é a mesma coisa na sua cabeça 'essa é a última vez que eu como tanta feijoada'... Até a outra quarta-feira!"

Uma voz mais grossa corta a conversa, para dar também seu ponto-de-vista:

"Olha, isso não é nada, por que todos os dias eu passo por uma humilhação ainda maior... Levo vários respingos cada vez que você vai ao banheiro e ainda fico ouvindo os apelidos que você dá ao próprio equipamento - 'grande tora', 'desbravador de cavidades' - he, he, he!"

- E esse agora, quem é?

"Esqueceu que tem um botão na calça também?"

Não, não, é melhor que os botões continuem a nos ouvir calados. Vai ver eles já desenvolveram a capacidade de falar, mas chegaram à conclusão que simplesmente não vale a pena. O mundo ainda não está preparado para suas revelações e nem para aceitar as críticas, tampouco tem maturidade suficiente para seguir seus conselhos.

Por via das dúvidas, já estou tomando mais cuidado para não respingar nos botões.

8 de set. de 2008

Agora

"Você vai casar? Tem que ser Agora!

A Agora! Assessoria em Casamentos garante a cerimônia dos seus sonhos.

Fale com uma de nossas consultoras e lembre-se: se você vai dizer 'sim', tem que ser Agora!"

Carlos Charles guardou o cartão no bolso externo do paletó pois sabia que ele renderia boas risadas mais tarde. Na sua frente, a simpática consultora da Agora! Casamentos ajeitava os cravos na lapela de todos, inclusive daquele tio que bebeu antes de chegar e perguntava se ela era o padre.

- Ai, ai, ai, ai, ai.

Na escala de 'ais' de Carlos Charles (na qual cada 'ai' representava um nível de breguice), os convidados receberam cinco. Mas sua missão ainda estava começando e ele deveria guardar suas forças para o que ainda estava por vir.

Primeira tarefa: registrar a noiva. Esperou que todos os convidados e o noivo entrassem e postou-se na lateral da igreja.

Lá veio ela, pontualmente. Desceu do carro, um Cadilac rosa, em seu vestido bordado de lentejoulas fruta-cor. Carlos apontou o celular, mirou e guardou a cena.

No mais, até que a cerimônia foi tranqüila.

Tirando algumas gafes, como o fato da noiva não ter respondido o tradicional 'sim'.
Ousada, quando o padre fez a pergunta da noite, disse com convicção:

- Com certeza!

Foi ovacionada com uma chuva de risoto de frango, já preparado para ser servido no bufê, e de lá o novo casal partiu em uma carruagem cujo padronagem seguia a mesma do vestido.

"É agora que eu entro", pensou Carlos, ajeitando a gravata cheia de cristais.

- Com licença? O senhor pode me acompanhar?

Chamou de lado o rapaz da decoração.

- Em primeiro lugar, este tapete. Veja, tem dobras em tudo que é lado. Ajeite! Em segundo, pode substituir essas flores murchas.

A verdade é que fossem elas de plástico como desejava a garota-furta-cor recém desencalhada e não seria necessário, mas elas não resistiram aos ataques das mãos dos convidados, que só não as levaram porque os arranjos estavam bem amarrados.

- E as bananeiras do altar, remova.

- Mas quem é o senhor?

- Não interessa! A próxima noiva não quer nada disso! Vamos, que ela não vai casar com o Tarzan. Tire as bananeiras.

Mas que fique claro que não fora um erro do decorador, o toque tropical havia sido imposição das outras noivas.

- E onde que eu vou colocar?

- Acho melhor não me peguntar e descobrir um lugar logo logo, ou eu vou explicar.

Logo começaram a chegar os convidados do casamento de Elisângela. Laleska, uma transexual chamado Osvaldo, fez questão de usar um motivo de flores na cabeça.

Em poucos minutos, a igreja estava exatamente como Elisângela vislumbrava e Carlos a avisou pelo telefone:

- Está tudo do jeito que você quer. Pode vir.

Na maison, Elisângela finalmente respirou aliviada, fazendo com que o clima sossegasse. Não por acaso, havia uma profissional de massagem terapêutica estrategicamente contratada ali. Para aliviar os estresse dos funcionários, obrigados a lidar com noivas semanalmente. Dessa vez, até ela estava acalmando Elisângela.

- Calma, é só o seu casamento, tudo vai estar do jeito que você quer...

Mas nunca tudo estava do jeito que Elisângela queria. Quase foi com bobes e tudo cuidar pessoalmente da decoração. Foi contida pela turma do penteado, que a cercou e a prendeu com os fios dos secadores de cabelo.

- Calma que ainda faltam os últimos ajustes no topete! Segura ela na cadeira!

O noivo aguardava no bar da esquina e comenta-se que ficou extremamente feliz, afinal, ganhara o campeonato de sinuca do começo da tarde.

Posicionados todos os convidados, a igreja parecia um harmonioso mar de tecidos e texturas. Elisângela tinha razão: a decoração simplista fez com que seus trajes ornassem com o restante, ganhando o merecido destaque.
(continua)