27 de ago. de 2008

Chat

Elisângela diz:
Não gostei.

Carlos Charles diz:
Oi? Hello?

Elisângela diz:
Não gostei dos vestidos que o estilista desenhou para mim.
Não concordei com nenhuma das propostas.

Carlos Charles diz:
Boa tarde para você também, vou muito bem, obrigado por perguntar.

Elisângela diz:
Ah, não enche com bobagens!

Carlos Charles diz:
Mas como assim não gostou de nenhum? O cara é o bam-bam-bam dos casamentos.

Elisângela diz:
Não importa, não gostei. Nenhum refletia minha personalidade.

Carlos Charles diz:
Bem, se você queria um espelho, por que não pediu a ele de uma vez e pronto?

Elisângela diz:
Haha Mas você sabe o que eu quero dizer.

Carlos Charles diz:
Sim, imagino a sua cara torcendo o nariz para vestidos que outras mulheres dariam um rim para ter.

Elisângela diz:
Por mim, podem levar em troca de uma paçoca, que eu não ligo. Quero algo que tenha a minha personalidade, não o que está na moda.

Carlos Charles diz:
Ou seja, estamos falando de uma peça que diga "eu sou melhor que você", mas de uma maneira clássica.

Elisângela diz:
Você sempre consegue traduzir o que eu digo!

Carlos Charles diz:
Se joga na igreja com uma faixa com o seu CEP!

Elisângela diz:
Hahaha Não, vamos falar sério. O quê que eu faço?

Carlos Charles diz:
E como é que eu vou saber? O mais difícil, conseguir um homem compreensível que aturasse todas as suas loucuras, você já fez. Será que precisa de tanta frescura assim com o vestido?

Elisângela diz:
.....................

Carlos Charles diz:
Ok, não está mais aqui quem digitou.

Elisângela diz:



Carlos Charles diz:
Acho que deu erro, não veio a mensagem...

Elisângela diz:
(não deu erro, mandei em branco para deixar claro que não estou falando com você)

Carlos Charles diz:
Hahahaha Deixa disso!

Elisângela diz:
Vai me ajudar ou não?

Carlos Charles diz:
Vamos organizar o pensamento.

Elisângela diz:
Tá.

Carlos Charles diz:
Primeiro, vamos de branco mesmo? Seguindo a tradição e até porque noiva de outra cor fica igual a qualquer outra da festa que vai querer chamar mais atenção do que você.

Elisângela diz:
Certo.

Carlos Charles diz:
(Acredite, tem mulher que encomenda vestido claro para se fazer passar pela noiva)

Elisângela diz:
Os seguranças do bufê já estão avisados para barrar qualquer pessoa com traje branco, creme, amarelinho claro ou qualquer tom pastel, mesmo que seja azul bebê. Quem tentar passar por eles será convidado a se retirar ou terá as vestes imediatamente rasgadas.

Carlos Charles diz:
Arrasou na regra!

Elisângela diz:
Faço o meu melhor.

Carlos Charles diz:
Você quer parecer uma princesa elegante, sem as mangas bufantes da Lady Di, com um frescor vespertino e uma aura de feminilidade. Certo?

Elisângela diz:
Certo, certo, certo!

Carlos Charles diz:
Talvez eu tenha algo bom para você...

Carlos Charles envia o arquivo: Bride.jpg
Transferência de "Bride.jpg" está completa.

Open

Carlos Charles diz:
Abre aí!

Elisângela diz:
Carlos, esse é o meu vestido! Onde você achou?

Carlos Charles diz:
Haha Esse crédito não é meu... Sua mãe falou comigo ontem à noite. Ela viu seu desespero e pediu à mesma estilista que fez o vestido do casamento dela, lá na Suécia, fazer o seu. Como ela não entende muito de computadores, pediu para que eu recebesse a foto dele pronto. E, obviamente, guardei o arquivo!

Elisângela diz:
Mas ele é lindo e tem a minha cara!

Carlos Charles diz:
Eu sei... E já está viajando de avião para cá. Com as milhas que ele vai acumular, depois o vestido vai poder voar até Buenos Aires.

Elisângela diz:
E você sabia disso o tempo todo?

Carlos Charles diz:
Sim.

Elisângela diz:



Carlos Charles diz:
De novo?

Elisângela diz:
(Se quiser que eu volte a falar com você, me busca um frappé).

Carlos Charles diz:
Vou pegar! Este cyber tem um dos melhores frappés que já tomei!


Carlos Charles alterou o estado para "Volto logo".

Carlos Charles alterou o estado para "Online".

Carlos Charles diz:
Toma!

Elisângela diz:
Não quero de morango. Queria de chocolate!

Carlos Charles diz:
Por isso que eu não me caso!

Elisângela diz:


Carlos Charles diz:
Tá bom, vou trocar. Ai, mas não me belisca!

Carlos Charles está off-line

26 de ago. de 2008

Fanatismo

Você conhece a história. Modelo, engravidou de jogador de futebol. A diferença, neste caso, é que ela era paraguaia, não brasileira. Mas a ascensão às colunas sociais foi tão vertiginosa quanto qualquer outra. Pudera, estava grávida do Canhão Canhoto, a, então, promessa do futebol no país. Infelizmente, o Canhão Canhoto, depois de chegar à seleção, perdeu totalmente a mira e sua artilharia acertou apenas o óvulo de Teresa, a popular Tuta, apelido de infância pelo qual ficou conhecida assim que pisou pela primeira vez na passarela.

A Tuta logo ganhou mais espaço no noticiário e, num golpe de azar para o jogador, mas de muita sorte para ela, um acidente de avião a tornou viúva sem nunca ter se casado. Em seu ventre ficou o herdeiro do Canhão, que depois viria a se confirmar ser uma menina, batizada de Yota (pronuncia-se Xôta).

A sorte foi mesmo dela, pois logo apareceu em todos os programas de televisão para contar sua história. Posou nua, fez um filme pornô e lançou um livro, “My Vida con El Cañón", cuja proposta era mostrar fotos tiradas pela própria Tuta durante os momentos de mais, digamos, intimidade com o atacante.

Não demorou a ganhar seu próprio programa de televisão. Infantil, claro.

Isso foi há quase trinta anos. Hoje, a Tuta é um ícone da TV e já está formando sua quarta geração de espectadores. À medida que a idade foi passando, os decotes foram descendo e a barra da saia subindo.

- Tuta, a direção da emissora mandou dizer que você tem que colocar pelo menos uma saia para apresentar o programa.

- Mas eso és una saia! Solamiente un poquito curtita, pero és una saia!

- Disseram que pêlo pubiano é demais para antes das 22 horas.

Em seu auge, o programa Tudo da Tuta chegou a ter mais de oito horas de exibição diária. Os fãs ficaram conhecidos como Tutitos e Tutitas, o apelido carinhoso que ganharam da apresentadora.

- Tutitos e tutitas, nón aperten todos los botóns del elebador, és feo... Aprendam con su amiga Tuta: “tiene q apertar solamiente en tu andar”. Si? Concordan? Que Bueno! Sinto una cosa buena aqui em my corazón quando miro para usteds, tutitos!

E Tuta pressionava o próprio peito, fazendo vibrar o silicone.

Foi ela o único motivo de discórdia entre o Ricardo e a Sandra.

Conheceram-se na ótica em que ela trabalhava, quando o Ricardo foi mandar fazer seu novo par de óculos.

- Olha, deixa eu arrumar a haste para você. Esta armação combina bastante com seu rosto, que é muito harmonioso.

- Aposto que você diz isso para todos os míopes que não conseguem enxergar direito na hora de escolher.

- Hihihihihi.

Trocaram telefones e começaram a sair, mas foi só no terceiro encontro que ela viu tatuada a frase ‘Tutito Para Siempre’ no antebraço do rapaz.

- Nossa, você fez uma tatuagem em homenagem à Tuta? Isso foi na adolescência?

- Não, foi semana passada. Eu queria dizer isso a você antes, porém não tinha encontrado coragem. Eu sou fã da Tuta.

- Fã?

- Sim, fã. Assim, vidrado mesmo.

- Mas você já beira os trinta anos...

- E o quê que tem?

Só uma coisa tirava Ricardo do sério: que dissessem que ele era velho demais para ter um ídolo infantil.

- Tuta é energia, Tuta é positividade, Tuta é atitude, Tuta é top e por isso desperta inveja nas pessoas, Tuta é tudo. Ela é uma pessoa tão iluminada, que faz o bem para tanta gente. Você sabe do projeto dela para assistência de pessoas autistas e com síndrome de Down?

“Deve ser porque o trabalho dela está no mesmo nível de compreensão deles”, raciocinou Sandra e preferiu mudar de assunto. Assistia à Tuta quando criança, mas desde que fizera treze anos mudara sua atenção para artistas adolescentes e depois para cantores adultos.

No fim, embriagada pela possibilidade de um amor novo, achou até a idéia engraçadinha. Ricardo ficava bonitinho bravo, franzia a testa e deixava mostrar um defeitinho no dente que ela ainda não havia reparado. No fundo, Sandra sempre fora uma garota muito maternal e enxergava ali um provável garoto que precisaria de sua atenção e cuidados.

Empolgou-se no dia em que foi conhecer a mãe do rapaz.

- Então, aqui é o seu quarto?

Foi entrando e avistou um vulto na cama, debaixo dos lençóis.

- Quem é aquela mulher dormindo na sua cama? Você não disse que não tem irmãs?

- Ah, aquela é a minha Tuta inflável. Foi entregue ontem. Finalmente consegui encontrá-la, só foram feitos quinhentos mil exemplares dela, um item raríssimo de colecionador! É tão realista que uma vez por mês ela menstrua.

A mãe dele, na verdade, não era a que estava na cozinha, preparando o almoço para a nora. Era a Tuta, que se fazia presente em diversos itens espalhados pelo quarto, todos ‘raridades de colecionador’, como Ricardo ressaltava ao descrever cada um deles.

- Esta foto é da campanha de introdução de uso de preservativos para crianças de menos de dez anos, essa é do ensaio para a Revista de Ginecologia Moderna. Olha, ela autografou para mim bem ao lado das trompas de falópio!

- Nossa, esse disco aqui eu também tinha. Não tem aquela música, a Tabuada da Tuta?

- Tem, sim.

- Engraçado, na época não parecia absurdo, mas não é estranho que ela só cantava até a tabuada do dois?

- Sim, existiu uma gravação em que ela cantava até a do quatro, mas como ela não conseguia decorar para cantar ao vivo, diminuíram para essa. A Tabuada da Tuta até o quatro é hoje um item raríssimo de colecionador – que eu tenho, claro!

Sandra passou a acompanhar Ricardo nos shows, entrevistas e aparições públicas de Tuta. Preparava garrafas térmicas com leite achocolatado, chá de limão gelado, além de bolos e tortas, pois a vigília na calçada em frente ao hotel começava horas (às vezes até dias) antes dos eventos.

- Soube que ela vai estar na cidade com a Yota para dar entrevista no programa ‘O que se faz de noite se faz de dia também’.

- Corre para a porta da emissora!

Organizadas em equipes de fã-clubes, todos ficavam à espreita para conseguir uma foto, um pedaço do cabelo, um beliscão que fosse do ídolo.

- Olha ali, San, aqueles são nossos rivais.

- Como assim, rivais?

- Eu sou o presidente do fã-clube El Hijos de Tuta, eles são do Prós-Tutitas. Não nos damos bem.

- Ué, mas não são todos igualmente fãs?

- Ai, como você não entende as coisas! A Tuta não tem tempo de atender todos, por isso, nos dividimos em grupos e atacamos em bando para conseguir uma foto com ela! Hoje é o meu dia de tirar.

Um pompom cruzou o ar, iniciando o que Sandra chamaria para sempre de sua primeira vez nas trincheiras. Os clubes se atacavam mutuamente, cada qual bradando como um grito de guerra os itens que possuíam:

- Meu vinil da edição eslovena do Tuta Ensina a Contar Até Dez está autografado!

- Minha boneca Tuta Mulher-Bomba tem explosivos acoplados que detonam de verdade!

- Eu tenho a cópia da certidão de nascimento da Yota!

- Eu tenho a original!

E voavam pelos ares faixas, bandeiras, cartazes, tudo que havia sido confeccionado em homenagem à apresentadora.

Aproveitando a distração entre os fãs, o automóvel que transportava Tuta saiu da garagem da emissora.

- Olha ela lá, cerca!

Atordoada, Sandra viu o seu namorado e membros de ambos os fã-clubes se atiraram na frente do carro. Ricardo pulou sobre o capô e gritava para Tuta o quanto a amava. Foi arremessado ao dobrarem a primeiro esquina, o que lhe rendeu arranhões na panturrilha.

- Eu acho que consegui!

- Conseguiu o quê?

- A Tuta sempre leva uma máquina fotográfica e registra tudo para depois colocar no site do programa depois. Acho que consegui colocar o rosto na janela bem na hora que ela bateu uma foto!

Quase um mês depois, o Tuta.com atualizava suas fotos e, na seção “Mys Amigos Tutitos”, lá estavam as imagens daquele dia.

- Olha, Sandra, eu consegui! Sou eu aqui no site oficial da Tuta!

- Onde, que eu não estou vendo?

- Aqui, no fundo, na janela, olha! Ai que emoção! Os Prós-Tutitas vão morrer de inveja! Vou escrever um comentário: “Viva el Hijos de Tuta”.

- Que pequenininha a sua cara aqui, né? E o que é isso marrom aqui no canto? Parece... Não, não pode ser... É um mamilo?

- Sim, eu estou na mesma foto que o mamilo da Tuta!

- Mas eles nem usaram um editor de imagem para apagar?

- Fotojornalismo é assim! A Tuta só faz sucesso porque é espontânea, é gente como a gente. Todo mundo tem mamilo, para quê esconder?

- Olha, aqui na seção de agenda diz que vai ter participação dela nesse show no parque amanhã. Você vai querer ir?

E Sandra, só de olhar a alegria estampada no rosto do rapaz, foi tratar de preparar as garrafas para o chocolate e o chá.

18 de ago. de 2008

I realmente lovo meu amor

“Você não pode perder Marília Bonde, com a turnê dos sucessos do seu novo CD I Love Meu Amor, todas as quintas, sextas, sábados e domingos de agosto reinaugurando o Opera House of Concert em São Paulo”

- Nossa, que cedo. Ainda faltam dois meses para agosto...

Mas Karmem já estava petrificada ao meu lado. Conseguiu apenas balbuciar algumas palavras, olhando para o rádio.

- Marília Bonde... I Love Meu Amor... Eu... Preciso... Ver... Esse... Xou...

Eu já conhecia o brilho naqueles enormes olhos castanhos. O brilho que eu buscava em todas as minhas ações durante os anos em que a namorei.

- Se você quiser, eu levo você na estréia. O Opera House of Concert fica a oito quarteirões do meu trabalho...

Karmem grunhiu tão alto que todos os pássaros da região se mudaram para nunca mais voltar.

- AAAAAAAAHHHHHHHHHH! Você consegue comprar um ingresso para mim?

- Dois, na verdade. Para nós. Eu vou junto, se você quiser.

- O quê? Ah, sim, não importa quem vá. Posso até aturar sair com você, mas me traz esse ingresso.

- Pode deixar que na segunda eu levo.

- Que segunda? Eu quero agora! Vá já, antes que acabe.

- Mas hoje é sábado, a gente está aqui namorando... Nem sei se já estão vendendo, tão antecipado assim...

- E se você quiser que algum outro sábado eu ainda seja sua namorada, vá buscar agora o meu ingresso, que eu prefiro perder você a perder a Marília!

O pior é que eu sabia que Karmem não estava brincando.

Rumei à casa de espetáculos, meio contrariado, mas sabendo que todo o futuro da relação podia depender disso. “O que tem de mais, aliás? Eu vou lá, é perto mesmo, compro os ingressos e volto. Karmem vai assistir à Marília cantando e vamos ficar namorando de mãos dadas, curtindo a música e ela vai perceber que eu sou o amor de sua vida. Nada mais simples”.

Era um desejo, não um pensamento. Nada da vida com Karmem era simples. A presença de Karmem atrapalhava até o mais corriqueiro dos atos. Como amarrar os cadarços. Sempre um ficava muito mais comprido que o outro.

Primeira tentativa - sábado, 16 de junho.

Cheguei à bilheteria, que não tinha fila. Com R$ 50,00 para os ingressos. Íamos aproveitar para pagar metade com nossas carteirinhas de estudante.

- Pois não senhor. - disse a bilheteira, com um sorriso forçado e claramente pedindo forças ao Senhor para aturar mais um dia de gente chata e sem paciência para escolher os lugares.

- Eu queria dois ingressos de meia entrada para o xou da Marília Bonde.

- Ainda não estão à venda, senhor.

E apontou para o cartaz que informava: ingressos para Marília Bonde a partir de 18 de junho.

- Dá para reservar?

E a moça apontou para o cartaz ao lado, que dizia: “não fazemos reservas”

- E se eu deixar pago?

O dedo indicador apontava a frase, logo abaixo: “Nem com pagamento adiantado”.

Cartazes foram feitos para que as pessoas não tenham que repetir as respostas para as mesmas perguntas mas, no fim, são usados para dizer “além de chato, você não presta atenção. Já está escrito ali que isso, isso e aquilo.”

- Karmem, os ingressos ainda não estão à venda. Na segunda eu passo aqui e compro na hora do almoço.

- Eu sabia que nem para isso você prestava. Mas tudo bem. Como eu já contava que você não ia conseguir, falei com a vizinha aqui da frente, que pediu para você comprar ingresso para ela e o namorado também. Porque o namorado dela tem um emprego de verdade e não pode se dar ao luxo de ficar saindo na hora do almoço para ir comprar nada para ela. Ao contrário de você. Vamos ver se pelo menos isso você consegue, não é mesmo?

- Tá bom, Ká. Mas não vamos discutir por celular. Daqui a pouco eu chego aí.

- É, vai chegar e sem os ingressos que prometeu. Mas tudo bem, porque para sua sorte eu sou uma mulher muito compreensiva e já sei que você não tem capacidade para muita coisa. Ah, no caminho, pode passar no supermercado? Acabaram algumas coisinhas aqui. Vai anotando...

E lá veio uma lista com aproximadamente 40 itens, entre alimentos e produtos de higiene pessoal, incluindo absorventes.

Segunda tentativa - segunda-feira, 18 de junho.

No fim, a vizinha de Karmem também tinha um outro casal de amigos que queria assistir ao xou e lá fui eu com R$ 250,00 comprar os seis ingressos. Duas meias entradas e quatro inteiras.

“Bom, hoje eu resolvo” foi o meu pensamento. Que se alterou quando, cinco quarteirões antes de chegar, vi a fila. “Não pode ser. Deve ser para outra coisa”. E usei a expressão mais apreciada pelos paulistanos:

- Essa fila é para quê?

- Você não sabe? Para o xou da Marília Bonde! O último CD dela está tocando sem parar no rádio!

“Maldita promoção de artistas!”. Mas peguei a fila. Quase três horas depois, quando faltavam apenas oito pessoas na minha frente e eu já havia desistido da idéia de ainda almoçar de verdade e já havia comido um pastel da barraca em frente, vi um sinal que mais parecia um aviso divino do que um papelão impresso: “Esgotado”.

A revolta na fila foi geral. Corri em frente à bilheteria e ainda consegui falar com a vendedora:

- Mas esgotado, como? São cinco semanas em cartaz, com quatro apresentações por semana! Não pode ser!

- Senhor, estávamos vendendo apenas para a primeira semana. Os bilhetes para a segunda semana vão começar a ser vendidos na quinta-feira.

Disquei os números no celular já imaginando qual seria a reação. Iríamos perder a estréia, mas não o xou.

- Ká, você não vai acreditar, mas os ingresso esgotaram quando só faltavam oito pessoas na minha frente, acredita?

- Acredito, acredito sim. O que eu não acredito é que você é tão incompetente assim. Nem para isso você serve mesmo. Mas pode deixar. Vou ver se eu arrumo um homem capaz de uma coisa tão simples como comprar o ingresso de um xou para mim.

- Calma, Karmem. Na quinta-feira, eles começam a vender os ingressos para a segunda semana e eu compro para você.

- E você acha que eu confio em você? Eu mesma vou comprar esses ingressos, pode deixar.

Dali por diante, a cada dia que passava Karmem arrumava em média um casal de amigos que também queria ir ao xou. Na quinta, tínhamos R$ 650 para comprar os ingressos. Combinamos que Karmem passaria no meu serviço e iríamos juntos comprá-los.

Terceira tentativa - quinta-feira, 21 de junho.

- Dá para você descer logo ou vai esperar os ingressos acabarem de novo?

Era assim, sem nem mesmo dizer alô, que Karmem me chamava pelo celular.

- Já estou indo, coração.

- E ainda por cima, eu namoro um pobre, que nem carro tem e vai me fazer andar até lá!

Karmem só andava sem reclamar por ruas onde houvesse um número razoável de lojas. Qualquer quarteirão sem vitrines a deixava com muitas dores pelos pés, coxas e até nas costas.

- Falta muito?

- Eu não falei que são oito quarteirões? Ainda não saímos do primeiro...

- Meus pés já estão doendo...

Pelo menos, não nos distraímos e conseguimos chegar com uma média boa de tempo. A tempo, aliás, de ver vários pedreiros, caminhões e sacos e sacos de cimento e material de construção em frente à casa.

- O que está acontecendo?

- Ah, Karmem, lembra que esse xou é de reinauguração do Opera House of Concert? Então, eles estão reformando... Eu vou levar você numa casa de espetáculos novinha...

- Assim espero.

Parecia até que ela previa o que estava prestes a acontecer. A bilheteria, por exemplo, fechada por causa da reforma. Uma plaquinha, mas dessa vez sem nenhum dedinho apontando-a, dizia “ingressos à venda nas lojas Pag Mais no shopping Tal, rua Tal, número tal”. Exatamente a dois quarteirões do meu serviço. Para o outro lado. Somados aos oito que havíamos acabado de andar e teríamos que voltar, seriam dezoito no total.

Mas Karmem merecia o esforço. Em seus olhos, aliás, a expressão de fúria silenciosa era a que mais me amedrontava. A explosiva geralmente passava com um presente, mas a silenciosa levava dias e várias transações com o cartão de crédito para curar.

Voltamos mudos, passamos em frente ao ponto de partida, o escritório do meu trabalho, e seguimos para o shopping. Foi a primeira (e, aliás, a única) vez em que, no interior de um shopping, rumamos direto para uma loja específica, sem olhar para os lados. Pelo menos, teríamos nossos ingressos.

Pegamos a fila para uma simpática atendente que vendia os ingressos com uma camiseta do xou. Para mostrar que existiam pessoas que conseguiriam assisti-lo e que você poderia ser uma delas. Se... Não fôssemos comprar os ingressos de estudante.

- Desculpe, mas as meias-entradas só são vendidos nas bilheterias oficiais, não aqui no quiosque de vendas.

- Mas a bilheteria oficial está fechada por causa da reforma.

- Sim, a da Opera House of Concert está fechada, mas da The Show Must Go On, não. É do mesmo grupo e os ingressos estão sendo vendidos lá.

- Deixou Mastigou? O que é isso, um restaurante canibal?E onde raios fica isso?

- Ah, pertinho daqui. Logo ali na estrada de Itapecerica.

- Eu sei onde fica, Karmem. É a The Show Must Go On. Mas é meio perigoso para ir agora...

Em sua casa, Karmem maldizia todos os antepassados da bilheteira, do dono das casas Opera House of Concert e The Show Must Go On. Foi quando sua mãe comentou:

- Deixou Mastigou? Eu vou passar na frente amanhã.

Quarta tentativa - sexta-feira, 22 de junho.

Ficou acertado que a mãe de Karmem compraria os ingressos, para que Karmem pudesse me dizer “se não fosse a mamãe, eu nunca veria a Marília de perto” pelo resto de minha vida.

À noite, Karmem me recebeu com o olhar de triunfo. Sua mãe já ligara da rua e havia comprado os ingressos.

- Aqui estão. Nem tinha fila nem nada.

E jogou os ingressos em cima da mesa.

- Podem ir se arrumando, que eu levo vocês lá.

- Como, mamãe? Mas o xou é só em agosto...

- Agosto? Está louca, menina? Vai botando uma roupinha mais arrumada logo, senão vocês vão perder. Os seus amigos vão se encontrar lá com vocês?

- Mãe, deixe-me ver esses ingressos.

E lá estavam os tão cobiçados ingressos. Para o xou do Zuzu Souza.

- Zuzu Souza, mãe? Zuzu Souza?

- Não precisa agradecer. É mínimo o sacrifício que faço por qualquer das minhas filhas.

Se havia um cantor que Karmem odiava, era o Zuzu Souza. Antes, sem motivo. Agora, com motivo.

Depois do ataque de nervos e do choro rompente, Karmem se acalmou e começou a gargalhar histericamente. Sua mãe nem ouviu quando ela disse que era xou da Marília Bonde. Foi lá e comprou qualquer ingresso. Gastou os R$ 750 (além das nossas meias-entradas, da vizinha e dos casais amigos, era preciso comprar para mais duas colegas de trabalho de Karmem).

Agora estava nas minhas mãos, além de conseguir entrar no xou da Marília, convencer a casa a aceitar as entradas para o Zuzu de volta.

Quinta-tentativa - sábado, 23 de junho.

Meu bolso crescia a cada dia. Já eram mais de mil reais, pois, depois do episódio do Zuzu, a mãe de Karmem decidira ir junto ao xou, levando toda a família. Como Karmem não confiava em mais ninguém, foi comigo até a The Show. Realmente, quase não havia filas. Isso talvez porque fosse necessário pegar três conduções, passar uma avenida de barro, cortar cipós e até pegar uma balsa para chegar ao local. A mãe de Karmem prestava tão pouca atenção ao trânsito que nem percebia nada disso cada vez que tinha de ir para lá.

Enfim chegara a hora de comprar nossas entradas.

- Pois não? É para o xou do Zuzu de hoje à noite?

- Calma, Karmem. Ela não perguntou de propósito. Nós queremos entradas para o xou da Marília, em agosto. Da segunda semana.

- Lamento, senhor, mas o xou será na Opera House of Concert.

- Nós sabemos, mas só queremos os ingressos.

- Bem, eles só estão disponíveis na Opera House. Cada casa, apesar de pertencer ao mesmo grupo, só vende ingressos para os próprios espetáculos.

- Mas a Opera House está em reforma e nos disseram para comprar aqui...

- É verdade, mas a reforma terminou ontem e, desde hoje de manhã, os ingressos voltaram a ser vendidos lá. Não temos mais permissão para vender nenhuma entrada para esse xou. Ah, as lojas Pag Mais têm quiosques que também estão vendendo.

Consegui vender os ingressos errados com 5% de desconto em relação ao preço original para algumas pessoas que iam comprar mesmo para o xou do Zuzu (o que nos custou exatamente o valor do desconto da meia entrada que teríamos para comprar as entradas de estudante) e corremos todo o caminho de volta para chegar à Opera House. Encontramos apenas fãs desolados, chorando na calçada. Os ingressos para a segunda semana haviam se esgotado.

- Moça, por favor, quando estarão disponíveis os ingressos da terceira semana?

- Não sabemos. Mas a nossa bilheteria funciona a partir das nove horas. O senhor pode vir aqui nesse horário e verificar.

Sexta tentativa - segunda-feira, 25 de junho.

Era junho, mas o inverno já dava suas caras. Às cinco da manhã, cheguei à bilheteria. Eu não podia perder a oportunidade de comprar os ingressos. Todos os quinze, àquela altura, pois Karmem fazia questão de divulgar aos colegas e amigos que tinha um namorado tão bem mandado que iria fazer aquele sacrifício de chegar na bilheteria de madrugada para conseguir os ingressos. Para minha surpresa, já havia cerca de cem pessoas, amontoando-se em fila. Às seis da matina, minhas orelhas começavam a congelar. Senti que uma delas caíra, mas não pude ter certeza, pois meus dedos já haviam perdido a sensibilidade e não conseguia tatear nada com eles. Três horas depois, o guichê abriu e de lá veio a notícia, em uma plaquinha: “Os ingressos para o xou da Marília Bonde, terceira semana de apresentações, ainda não estão disponíveis”.

Mas eu não desistiria tão fácil.

Sétima tentativa - terça-feira, 26 de junho.

Cheguei mais cedo dessa vez, às quatro horas. A fila era menor. Umas oitenta pessoas. Adormeci em pé (o que não foi difícil, pois minhas pernas estavam endurecidas pelo frio), para ver novamente a mesma plaquetinha do dia anterior. Tomei uma decisão que mudaria aquela história. Na hora do almoço, comprei um sobretudo de R$ 300. E botas forradas com pele de carneiro, um gorro que cobria as orelhas e luvas de couro, o que custou R$ 420. Aquele frio ia ver só. Ah se ia!

Oitava tentativa - quarta-feira, 27 de junho.

Sorri com superioridade quando cheguei, às três da manhã, e não vi mais ninguém. Sim, eu era o primeiro da fila hoje! E devidamente agasalhado. Dormi com o nariz colado no vidro e acordei com a chegada da bilheteira. Que sorriu para mostrar o aviso de ingressos não disponíveis.

- Karmem...

- Já sei. Você vai dizer que ainda não conseguiu. Tudo bem, porque o seu Abelardo, da contabilidade, também quer três ingressos.

Nona tentativa - quinta-feira, 28 de junho.

Meu raciocínio já não funcionava direito. Talvez por isso resolvi ligar para o serviço de informações da Opera House antes de sair de casa. Totalmente descrente de que iria haver alguma nova informação. Mas eis que ouço a gravação dizer: “Os ingressos para a terceira semana do xou I Love Meu Amor, de Marília Bonde, já estão disponíveis para venda nas bilheterias da Opera House of Concert”. Liguei mais uma vez para ter certeza e disparei até o local. Mal pude acreditar!

- Karmem, hoje vai! Acabei de ligar para lá e os ingressos vão começar a ser vendidos hoje!

- Hmmm. Brfgrmndtbv...

Antes das dez da manhã Karmem não conseguia raciocinar o suficiente para formular qualquer frase com sujeito e predicado. Antes das seis, nem sequer murmurar palavras sem sentido ela conseguia, por isso não encarei como falta de atenção em relação aos sacrifícios que fazia por ela, pois a ligação estava sendo feita às duas da matina.

Fui novamente o primeiro a chegar e fiquei a imaginar quais cadeiras eu iria escolher. “Mais para o meio, para ver melhor os efeitos do palco? Mais para a frente, para ver a Marília de perto? Mais para trás para namorar à vontade? Ora, que besteira, se fosse para ficar longe, porque eu teria todo este trabalho? Vou ficar tão perto do palco que, se a Marília espirrar, eu pego o resfriado dela e depois ainda leilôo pela Internet!”

Como era de se esperar, mesmo os maiores fãs chegaram apenas depois das cinco. A cada um que chegava, eu sorria com mais superioridade. Eu ia ser o primeiro. Eu escolheria qualquer lugar. Somente a mim seria dado o privilégio, merecido, aliás, de poder optar por qualquer um dos três mil lugares da casa. Eu era o rei naquele momento. E tudo porque não desistira de acordar às duas da madrugada e ficar aguardando em pé, pacientemente, pela minha vez.

Imaginem, então, todos os sentimentos que puderam passar pelo meu coração quando a bilheteria abriu e a moça, reconhecendo-me, foi logo avisando:

- Moço, os ingressos para a terceira semana já esgotaram.

O sorriso ficou petrificado em meu rosto, mas dessa vez não era por causa do frio. Era o susto. “Uma brincadeira! É claro, uma brincadeira! Vamos nos descontrair, ora bolas! ha, ha, ha!”. Mas não era.

- Como, esgotaram? Você acaba de abrir a bilheteria. Ontem, não estavam à venda. Eu sou o primeiro a chegar... Danadinha, quase me mata de susto...

- Senhor, nós começamos a vender ontem, às catorze horas. Eles acabaram por volta das dezoito.

- Você está querendo me dizer que ontem, assim como hoje, eu fiquei cinco horas esperando a bilheteria abrir para você me dizer que os ingressos não estavam à venda e começaram a vendê-los no meio do dia?

- Exatamente, senhor.

- E você não poderia ter me dito, ontem, que eles seriam vendidos a partir das catorze horas?

- Mas eu não sabia, senhor.

- E a que horas os ingressos geralmente são liberados para venda?

- Sempre às nove, quando a bilheteria abre. Mas ontem, pela primeira vez, nós liberamos às catorze. Parece que o gerente ficou com dó das pessoas que vinham até aqui e não encontravam o ingresso para vender...

Foi aí que entendi porque os vidros eram blindados nesses guichês.

- Karmem...

- Que lugares você escolheu? Porque se você foi burro de pegar um muito atrás...

- Não se preocupe, Karmem. Não consegui os ingressos.

Apesar de tudo, o que mais devo reconhecer em Karmem era sua capacidade de perceber meus sentimentos mais profundos. Os superficiais, não. Esses ela ignorava. Mas os mais profundos tinham prioridade.

- Pode deixar esse xou para lá. Não vale tanto sacrifício, meu amor.

- Ah, vale, sim! Nem que eu compre esses ingressos e nem venha para esse xou! Agora, é questão de honra! Senão, todo esse esforço vai ter sido em vão, concorda?

- Ai, que bom que você está falando assim! Mesmo porque a dona Julia, do RH, também quer levar o sobrinho dela! Vou lá pegar o dinheiro com ela!

Décima tentativa - sexta-feira, 29 de junho.

Resumindo: cheguei às três da madrugada e esperei até o guichê abrir.

- E aí?

A bilheteira só sacudiu a cabeça, negativamente. Virei as costas e fui embora. Pelo celular, disse:

- Karmem?

- Sim?

- Não.

- Tá...

Décima primeira tentativa - sábado, 30 de junho.

Aquele era um sábado e na semana inteira eu havia dormido apenas três horas por noite na minha cama. Resolvi me dar esse presente de dormir até às seis. Tomando o café da manhã, liguei para o serviço de informações do Opera House mais uma vez. Esperando não ter novidades. Mas, em vez de escutar à mesma gravação, a voz disse: “Os ingressos para a quarta semana do xou I Love Meu Amor, de Marília Bonde, estarão disponíveis nas bilheterias do Opera House of Concert hoje, sábado, 30 de junho, a partir das onze horas da manhã”.

Foi a primeira vez que saí de casa de pijama depois de ter ficado adulto. Pijama e tênis, uma combinação horrível. O ônibus não estava à vista, por isso pulei num táxi. O taxista me olhou meio estranho, mas, como me lembrei que ao lado da casa de espetáculos havia um hospital, não vacilei e disse, com voz firme:

- Leve-me ao hospital Santa Bárbara! Urgente! Meu pai teve um derrame e está sendo operado!

Era inegável o desespero estampado em mim. Até eu estava acreditando que era preciso aquela urgência toda. Fizemos em menos de vinte minutos o trajeto e o taxista ainda insistiu para que eu não pagasse, mas pude ver marcado R$ 30 no taxímetro e deixei o dinheiro com ele. Foi bom, pois ele me viu entrando na fila em vez de entrar no hospital e fez gestos obscenos com as mãos.

Sim, eu reconheço que naquele dia havia baixado a guarda. Tivesse eu chegado às três da madrugada e seria o primeiro. Mas tudo bem. Eram só cinco pessoas na minha frente. Nada poderia sair errado.

A bilheteria abriu às nove e nos fizeram formar uma segunda fila, para os ingressos que seriam vendidos às onze. Tudo perfeito.

- Você conseguiu dessa vez, hein?

- Para você ver... Ou você vai me dizer os cinco que estavam na minha frente compraram todos os lugares?

- Imagina! Vamos lá. Quantas o senhor vai querer?

- Trinta e sete. Duas meias-entradas e o resto inteiras.

E mostrei os R$ 3550,00, pois, pelo que eu havia entendido, havia também uma família de ciganos querendo ir ao xou e Karmem se comprometera com todos eles que eu compraria os ingressos. O sorriso desapareceu do rosto da bilheteira e tenho certeza de que a vi pressionar um botão embaixo da mesa.

- O senhor quer quantos?

- Trinta e sete?- falei, como se estivesse perguntando para mim mesmo o que havia de errado.

Foi quando senti duas mãos pesadas em meus ombros. Um segurança de cada lado.

- O senhor pode nos acompanhar, por gentileza?

Entrei em pânico. O que eles fariam comigo? Iam me dar um prêmio pela minha insistência, só podia ser.

- Mas o que está acontecendo?

Por cima dos óculos de lentes verdes, um deles me explicou:

- A casa tem uma política muito severa em relação a cambistas.

E esmagou uma noz com apenas uma mão, deixando só migalhas.

- Não, eu não sou cambista! É que eu tenho uma namorada...

Mas parei a explicação. Achei melhor mandar todos para o inferno. Afinal, se queriam tanto estar ali, teriam que merecer, como eu. Ou, como Karmem, ter um namorado que merecia.

- Olha, faça o seguinte. Pode me vender só duas meias e está bom.

- Assim é melhor. Onde o senhor quer?

Finalmente eu havia conseguido! Ali, de pijamas e tendo saído de casa sem escovar os dentes pela primeira vez na vida, eu havia comprado dois ingressos para o xou da Marília Bonde! Por um momento pensei até em vendê-los por três vezes o preço, mas não! A satisfação era tanta que eu precisava assistir a esse xou! Nem que fosse só para olhar para a Marília e dizer: “Ó só, tô aqui!”

- Karmem?

- Já sei. No mínimo você vai me dizer que eu vou ter mais uma vez que dizer a todos os meus amigos que o bundão do meu namorado não conseguiu os bilhetes...

E o pior é que seria isso mesmo. Aí compreendi a situação como um todo. Eu precisava de uma desculpa por não ter comprado para mais ninguém. Olhei para os dois pedaços de papel na minha mão. Os ingressos eram nominais. Sim, eles eram nominais!

- São nominais!

- O quê?

- Os ingressos são nominais, Karmem. Eu não pude comprar para mais ninguém, pois eles imprimem o nome completo e RG das pessoas. Eu só sabia os nossos, por isso não deu para comprar...

E era verdade, por melhor que fosse a desculpa.

- Se você quiser, anote todos os nomes em um papel e eu venho comprar depois...

- Ah, meu amorzinho, não faça esse sacrifício todo pelos meus amigos.

Antes de mais nada, voltei para casa e dormi o resto do dia. E sonhei o tempo todo com grandes concertos da história, todos ficando para trás e as platéias me olhando com inveja porque eu tinha os melhores lugares.

No saldo final, eu havia gasto mais ou menos, com todos os táxis de bandeira dois na madrugada, roupas para o frio e as conduções durante o dia R$ 629,50, se contarmos também as balinhas de menta que comprei no último dia, mas eu havia economizado R$ 65,00 do que se tivesse comprado pela Internet duas entradas inteiras.

Quase dois meses depois, fomos ao xou. Tudo correu muito bem. A Marília estava com a voz impecável e parecia até que sabia do que eu havia passado, pois vez e meia me fitava com um olhar acolhedor.

Na saída, perguntei a Karmem:

- E então? Gostou do xou?

- Ah, mais ou menos. Acho que não estou mais assim tão fã da Marília. Ela já esteve melhor. Você guardou aqueles ingressos para o Zuzu?

Mas o pior foi, na semana seguinte, ouvir um colega de trabalho comentar:

- Ontem eu fui no encerramento do xou da Marília Bonde.

- Poxa, eu não sabia que você era fã! Deve ter sido difícil conseguir os ingressos. Ainda mais para o encerramento, né?

E fiquei aguardando que ele contasse uma história muito parecida com a minha.

- Vejá só o que aconteceu. Ontem, no meio da tarde, tocou o telefone lá em casa e era de uma rádio. Se eu tivesse atendido dizendo “alô” teria perdido o prêmio, mas, como eu sempre digo “pronto” ganhei dois ingressos para o xou! Fui no camarote e ainda conheci a Marília depois no camarim. Ela até autografou um CD e me deu de presente. Ainda tiramos fotos e ela disse que vai publicá-las no seu site pessoal. Ué, mas que cara é essa?

- Nada. Você deve ter guardado bem esse CD...

- Ah, não. Eu dei para o porteiro. Não curto muito Marília, - e. sussurando - achei o xou um saco. Se eu soubesse de alguém que quisesse as entradas eu teria dado, mas ninguém me pediu...

11 de ago. de 2008

As listas de Elisângela

Um mundo de compras até então desconhecido foi descortinado a Elisângela quando esta decidiu casar-se. Montar um lar significava escolher cada detalhe de sua nova vida e, portanto, uma chance de repensar em tudo e decidir por tudo aquilo que lhe seria útil.

- Veja, baixelas de aço inoxidável escovado! Eu preciso ter uma dessas! Saladeira de acrílico! Dá para ver a salada pelas laterais enquanto fazemos. Necessária.

- Precisamos mesmo desse penico metálico e furado que você está clicando?

- Isso é um escorredor de macarrão. Como você acha que a massa se separa da água? Via divórcio litigioso?

- E vai água para fazer macarrão? Vivendo e aprendendo.

Caio, o noivo, além de alheio ao que se passava numa cozinha, preferia a ignorância e servir-se dos sistemas de entrega pelo resto da vida a ter que escolher os utensílios. Ou qualquer outra coisa. Mas já pensava em como o escorredor poderia ser útil como capacete.

- Vamos comprar o que for mais resistente.

- E a lista dos seus padrinhos, cadê? Os do lado da noiva já foram escolhidos há tempos.

- Ainda não decidimos.

“Decidir” os padrinhos, no caso de Caio, significava girar uma garrafa de cerveja vazia na mesa do boteco com os amigos. Quem fosse apontado pelo gargalo, estaria no altar. O fundo da garrafa eliminava o concorrente.

Para não ter que se incomodar com mais perguntas sobre utilidades domésticas (“Mas para que serve uma vassoura mágica, ela tira coelhos da cartola enquanto você varre?”), Elisângela vestiu seu terninho cinza, roupa de guerra reservada a contatos com fornecedores dos eventos que organizava, e foi pessoalmente fazer a lista dos presentes. Acompanhada, claro, de seu melhor amigo.

- Você não está achando isso tedioso, está?

- Imagina! É como fazer compras com o dinheiro dos outros e ainda sem ter que levar para casa. Adorei!

- Olha, que lixeira linda! Mas é só para colocar lixo, acho que não precisa ser tão cara, né?

- Até no lixo a gente pode ter luxo, baby! Vira o código para cá.

Carlos Charles havia posicionado o aparelho leitor de códigos de barras que servia para montar a lista em seu pulso e brincava de atirar nos produtos escolhidos, imitando uma série de ficção científica cujo nome nem lembrava. Duplicou a quantidade, sem a noiva ver, de vários itens que faltavam em sua própria cozinha. As sobras teriam que ir para algum lugar, não é mesmo?

- Agora, calma, que este treco nem eu sei para que serve. - disse Elisângela, diante de uma pilha colorida.

- São forminhas de silicone. Você pode usar para fazer bolos e tortas em formatos diferentes, como estrelinha, conchinha, luazinha...

- Jura? Eu preciso disso!

- Mas você nem sabia para que serviam...

- Não interessa! Esta modalidade de esculturas alimentícias acaba de se tornar realidade na minha frente e, portanto, uma necessidade!

- Quer saber? Você nunca vai utilizar isso. Talvez, daqui a quarenta anos, depois de ter amamentado e coisa e tal, você derreta tudo para fazer um novo par de seios. Incluo na lista?

- Claro! Você vai ver como eu vou fazer pudins, saladas, arrozes, feijões, tudo em formato de bichinhos! Vou ser a mais nova confeiteira-escultora do bairro do Itaim.

E Carlos disparou o feixe de luz sobre o código de barras das forminhas, enquanto sonorizava com a boca: zuóm.

3 de ago. de 2008

Duelo de grinaldas

A cada dia, o Caio, o noivo, se revelava um cavalheiro mais envolvente e mais apaixonado, uma escolha certa de marido para toda vida. E cada dia ele compreendia melhor a noiva Elisângela. Tanto que decidiu não tentar entender mais nada. Deixou que a moça decidisse todos os detalhes da cerimônia de casamento, só arriscando palpites que não fizessem diferença.

Até porque um outro problema se evidenciava: no seu dia de princesa, Elisângela teria que dividir atenções com outra mulher, a Márcia Rosana, que reservara outro horário na mesma data e igreja, obrigando-as a escolher em conjunto a decoração.

E não é que seus gostos (ou a falta dele) fossem apenas distintos; enquanto a noiva nascida e criada no Itaim preferia tons pastéis e poucos elementos, a proposta de Márcia era mesclar elementos da cultura do antigo Egito e dos faraós com o clima discoteca dos anos 70.

O decorador tentava acalmar os ânimos quando as duas tentavam decidir os arranjos.

- Senhoritas, hoje eu tenho uma novidade que pode nos ajudar bastante a resolver as coisas.

- Você comprou uma arma, Reinaldo?

Os noivos, que chamavam a discussão sobre a decoração de duelo de grinaldas, ficavam no bar da esquina tomando cerveja e assistindo ao futebol de domingo.

- Sim, porque não pode haver um meio-termo entre tapete de sisal e de veludo roxo!

- Não sei o que você tem contra o tapete bordô. É chique, é uma coisa tipo Oscar, mas mais intenso. Será minha noite de princesa, eu quero dessa cor.

- Olha, Márcia, quem sabe você não esteja com o olho da mesma cor para combinar?

O primeiro elemento que voou pelos ares foi um cachepô. Tão rápido que ainda não desvendaram quem o arremessou. Foi respondido com uma saraivada de castiçais. Logo as duas rolavam pelos tapetes, enquanto derrubavam flores, arranjos, anéis para guardanapos e uma fazia valer o seu argumento para a outra.

- Olha aqui como não combina, sua cafona!

- E você é uma caipira que quer tudo com cara de mato em vez de colocar enfeite de verdade!

Foram rolando até toparem com mais uma pessoa entrando no recinto, o que serviu para colocar uma trégua na disputa. Foi Reinaldo quem a apresentou:

- Era disso que eu estava falando. Noivas, esta é mais uma moça que vai se casar no mesmo dia que vocês. Quem sabe ela nos ajude a desempatar as coisas, pode dar o voto de Minerva.

Secretamente, Reinaldo torcia (e pedia ao Santo Protetor dos Decoradores) para que não houvesse uma terceira opinião diferente das duas primeiras ou as coisas seriam piores ainda.

A mulher estendeu a mão a Elisângela.

- Prazer, meu nome é Laleska.

- Valeska?

- Não, Laleska, com ‘L’ de latifundiário. O meu noivo pediu desculpas, pois está atrasado. Acho que podemos começar sem ele, afinal, para que servem os homens nessa hora, né?

Foi medida de cima a baixo. Começando pelos pés. Um par de sapatos que Elisângela não reconheceu de nenhum estilista, o que significava que provavelmente teria sido feito sob medida. Calças agarradas, mas de cor discreta, e uma blusa mais espalhafatosa. Cabelos longos. Laleska era alta, parecia uma mulher importada. Só não se podia definir de onde.

“Só me faltava mais uma brega para esculhambar meu casamento”, pensou. “E até agora nada do Carlos Charles”, o amigo que havia prometido dar um jeito nas coisas, mas com quem não falava há vários dias.

Sentaram-se e fingiram que aquela era uma situação normal e corriqueira. Verdade seja dita, como terceiro voto, Laleska foi decidindo um a um os detalhes e parecia inclinada a aceitar tudo que Elisângela queria. A noiva do Itaim até desconfiou que vira mais de uma vez a terceira nubente procurar por seus olhos para decidir a aprovação das coisas quando lhe eram expostas as opções.

Do impasse de meia hora antes, a disposição dos arranjos da cerimônia fora praticamente resolvida. Logo, o celular de Laleska começou a tocar (a campainha era Enough is Enough, dueto de Barbra Streissand e Donna Summer).

- Alô? Oi, meu amor! Já está chegando? A gente já decidiu quase tudo, fique tranqüilo! As outras noivas são tão simpáticas. Tem uma moça linda, você vai ver. E tem uma Márcia Rosana também.

Ao longe, Elisângela reconheceu um ponto furta-cor, que aos poucos foi ficando mais nítido até que ela reconhecesse a echarpe.

- Olá! Atrasei muito? Eu me confundo todo na hora de pegar essa linha vermelha do metrô! Não me perguntem onde eu fui parar, pois eu não saberia explicar.

Era Carlos Charles o suposto candidato a marido de Laleska e, portanto, o responsável por restabelecer o equilíbrio na decoração.

Mais tarde, os dois conversavam em um bistrô.

- Mas quem é aquela Laleska?

- Ah, o nome real dela é Osvaldo. Nunca diga esse nome na frente dela.

- E você vai mesmo casar com ela?

- Definitivamente não! Só dei a você um voto a mais. Pronto, agora, você decide tudo.

- E a igreja? Você falou com o padre?

- Acredite em mim: Márcia Rosana não vai conferir se é verdade. Só o que tivemos que fazer é despistar o Reinaldo. Lembra que eu disse que haveria um preço?

- Lembro.

- Então, você vai ter que pagar dois terços de tudo em vez da metade. E dois dias da noiva.

- Dois por quê?

- Um será o seu. O outro será do Osvaldo, que no próximo mês será noiva numa festa junina e faz questão de passar por todos os preparativos. É o preço da atuação dele.

- Eu pagaria até a operação de mudança de sexo dele em troca de ter tudo do jeito que eu quero.

- Desconfio que essa ele já fez, mas vou avisá-lo.

- Avise, também, que ele vai ter que arrumar uma maneira de tirar aquelas árvores do altar quando eu chegar.

Verdadeira ou não, o ego de uma noiva é algo difícil de ser controlado. E, mesmo sabendo que era tudo uma farsa, Laleska tinha suas extravagâncias e gostaria de acrescentar seu toque pessoal à cerimônia. Sua exigência foi colocar bananeiras no altar “para dar um toque de naturalidade”, segundo ela. Bateu o pé, fez um balanço de tudo que havia votado a favor de Elisângela e alterou o local do enlace das outras duas para um cenário tropical.