27 de nov. de 2008

Câmera, filtros, chuva!

Karmem era daquelas alunas mais aplicadas. Ainda que para isso eu tivesse que me aplicar em tudo para concretizar suas idéias. Como na vez em que recebemos como tarefa fazer um vídeo para a faculdade de jornalismo. Tema livre, formato idem. O que à primeira vista pareceu ser o anúncio de um trabalho fácil, sem maiores problemas, logo transformou-se em um jogo de ego, no qual Karmem desejava a todo custo mostrar que podia, sim, superar a si mesma e ainda ter uma idéia simplória, condizente com a atual onda de desapego à matéria e às grandes produções em favor das histórias simples produzidas por "gente como a gente".

- Karmem, vamos aproveitar que dessa vez não tem tema específico e usar os seus contatos na TV?

A essa altura, Karmem já era responsável por um quadro no Jornal Eco, um respeitado programa com foco ecológico em uma emissora educativa.

- Como assim?

- Seguinte: você conversa com o pessoal na TV, pega umas imagens de arquivo e a gente monta um programa inteiro! Só temos que produzir dez minutos mesmo. A gente insere uma entrevista e mata o trabalho. Que tal?

(silêncio)

- Olha, já tenho até um tema: programas infantis. Vamos fazer um especial tipo "memória", mostrando várias cenas antigas, em branco e preto, até. Assim, a gente ainda sensibiliza o professor e garante uma nota alta.

(silêncio)

- Você não vai dizer nada, Karmem?

- Não.

- Por que não?

- Porque eu não acredito que você quer fazer isso. Que absurdo! Fazer um programa usando cenas de outros! Isso é plágio! E ainda me fazer ter de convencer o pessoal do arquivo a liberar isso. Você sabe o que a última estudante que pediu para liberarem os arquivos teve de fazer para conseguir as imagens?

- O quê?

- Bom, ninguém sabe, mas ela ficou mancando por umas três semanas.

- Mas o que você quer fazer, então?

E aí veio à tona o brilho dos enormes olhos castanhos, enquanto Karmem ajeitava os cabelos para falar. Nunca entendi qual a relação de Karmem com seus cabelos, mas parecia que arrumar seus cachos dava-lhe confiança total no que quer que fosse dizer. A verdade é que Karmem já tinha tido uma idéia e, quando Karmem tem uma idéia, todas as outras do mundo perdiam o sentido.

- Meu querido, você sabe a casa de praia dos meus pais?

Claro que sabia. Era lá que eles me faziam dormir na sala, num colchão que tinha ficado velho demais para o cachorro usar e ao lado de um tio que a cada ronco fazia todos os sapos coacharem assustados.

- Sim. O que que tem?

- Você sabe em que praia ela fica?

Ficava numa praia igual a todas as outras: cheia de areia, água e sal.

- Sim...

- Então. O litoral norte de São Paulo é parte essencial da história do país. Vamos contar os acontecimentos históricos dessas praias! A gente ainda aproveita e passa o fim de semana na praia! Não é genial? Dá até para gravar naquelas ruínas, vai ficar maravilhoso!

Sim, era genial e prático. Só teríamos que nos locomover mais de trezentos quilômetros para chegar, apenas Karmem apareceria no vídeo, pois eu teria que segurar a câmera (sem tripé, para ela poder reclamar que a imagem ficara tremida), gravar tudo debaixo de sol e ventando, para que também pudesse reclamar dos cabelos voando e perdendo a chapinha.

- Nossa, eu jamais teria tido uma idéia tão incrível! Ainda bem que a gente tem você para pensar por nós, Karmem.

E lá veio o sorriso de Karmem, que compensaria tudo que eu sabia que iria passar. Ou melhor, não, eu não sabia.

Primeiro, eu tive que descobrir a história das praias. Sim, pois Karmem não tinha a mínima idéia do que havia acontecido ali. Só sabia que era o seu lugar de veraneio desde criança e, portanto, alguma coisa de importante devia ter. Nem que fizéssemos uma pauta especial sobre o primeiro lugar em que ela havia comido ostras ou onde ela tinha ralado os joelhos para aprender a andar de bicicleta. Algo assim.

Depois de vasculhar toda a internet, não foi possível identificar uma única informação sobre qualquer acontecimento importante naquelas praias. Pelo que pesquisei, tudo que acontecia lá era os peixes nadarem nas águas, siris passearem pelas areias, turistas comerem milho, tomarem água de coco e pegarem bicho geográfico, crianças ficarem com insolação e um gordinho sempre ficar chorando porque voou areia no sorvete dele.

Nada mais, nada menos.

Mas eu não podia dizer a Karmem que sua praia não era importante, ora, onde já se viu? Havia até ruínas lá! Deviam ser, sei lá, do período paleolítico!

E foi atrás de informação sobre as ruínas que liguei para a prefeitura de Ubatuba.

- Foi ali que o Padre Anchieta ensinou os índios a escreverem?

- Não, não foi. Foi numa praia mais para cima...

- E as ruínas que lá se encontram? Eram um quartel general secreto que durante anos treinou agentes do exército brasileiro que atuavam no exterior, capazes de sobreviver a altas temperaturas e a se camuflarem na areia utilizando as técnicas da invisibilidade ninja?

- Ruína? Que ruína? Ah, aqueles pedaços de parede? Era a casa do seu Omar, que ele tentou reformar depois que a maresia acabou com tudo, mas o dinheiro acabou no meio. Grande seu Omar. Olha, ele tinha um filho que era caolho, mas muito boa gente...

A minha missão era achar uma forma de arrancar alguma coisa para falar no trabalho. Nem que eu inventasse! A solução foi falar sobre a colonização de Ubatuba em si e do que havia de mais importante ali. Não, a colonização do Brasil não havia sido iniciada ali, mas não tinha sido muito diferente do resto do país, certo? E dava até para enfiar a parte do Padre Anchieta ensinar os índios a escrever, que, afinal, tinha sido ali pertinho mesmo e ninguém iria reconhecer a praia só de ver a areia, iria?

E assim eu consegui, apesar das dificuldades, escrever dez páginas de conteúdo, o que é bastante se pensarmos em um vídeo. Dava uma página por minuto.

- Karmem, eu já peguei a câmera do meu avô, mas ele só tinha uma bateria. Eu já comprei mais duas. Você pediu à sua irmã para carregar as suas três?

- Mas para que tudo isso? Cada uma dura doze horas, não é?

Não podia contar a ela que, por essa conta, quatro baterias dariam para ficar gravando o final de semana inteiro, ininterruptamente.

- Ah, mas você sabe como a gente não pode confiar... Vai que uma delas falha, a outra já está descarregada e a gente acha a melhor imagem...

Não é que eu não confiasse nos aparelhos eletrônicos, eu não confiava era em Karmem mesmo. Sabia que ela podia deixar a câmera ligada a noite toda, derrubar uma bateria no mar (senão a câmera inteira) e ainda nem dizer à irmã para carregá-las. Por isso liguei para sua irmã.

- Oi. Tudo bem?

- Já carreguei as baterias.

A irmã de Karmem nunca dizia mais do que o estritamente necessário. Jamais.

- Olha, obrigado, viu?

(silêncio e desligou o telefone)

A única parte em que Karmem entrava na pré-produção do trabalho era convencer seus pais, novamente, de que eu não era o anti-cristo em pessoa e podia ir com eles à praia. Foram necessários apenas três horas de discussão, uma ameaça de greve de fome e parar de respirar uma vez apenas para conseguir. Karmem era muita madura.

E cada vez eles me aceitavam mais (ou me rejeitavam menos).

Partimos numa sexta-feira à noite, pois o pai de Karmem achava mais seguro fazer três horas de viagem de madrugada numa estrada sem iluminação, após a uma da manhã, sem ter parado para descansar depois de mais de vinte horas acordado, do que expor a família ao sol do dia em excesso. Depois ficavam todos estirados na praia o dia inteiro, cansados demais para se locomover para debaixo do guarda-sol.

Antes de sair, testei uma a uma todas as baterias e reli o texto (cada uma das seis cópias).

- Mas para quê tantas cópias? Somos só nós dois...

- Uma delas pode voar, a outra cair no mar, essas coisas. Depois, não vão atrapalhar, né?

- Karmem! Corre logo para o carro, que está todo mundo esperando! E diz para esse seu namorado que é melhor ele colocar as coisas dele no carro, senão não vai mais caber!

A maioria das pessoas da família de Karmem falava como se eu fosse algum tipo de surdo ou estrangeiro, que não fosse capaz de compreender o que eles diziam. Pediam para Karmem retransmitir tudo e nunca falavam diretamente comigo, ainda que eu estivesse no mesmo cômodo.

- Pega as suas coisas e corre, que eles querem mais é deixar você aqui!

- Mas...

- Vai logo, logo! Olha aqui a bolsa da câmera!

E enfim partimos, depois que eles conseguiram encaixar, que eu tenha visto, uma churrasqueira, uma piscina inflável (cheia), um carrinho de rolimã, um saco de cimento, três caixas de isopor cheias de ostras, embaladas em gelo seco, e roupas suficientes para passar o mês. Eram assim todos os finais de semana na praia. Karmem levava pelo menos quinze combinações diferentes de biquínis para cada dia.

O único que não relaxava nessas viagens era eu. Talvez porque eu já tivesse presenciado que até o pai de Karmem aproveitava para tirar rápidos cochilos, mesmo estando ao volante. Mas Karmem me reconfortou, alertando que, sem os óculos, ele não enxergava a estrada mesmo, então não fazia diferença.

Chegamos, depois de três horas, mais ou menos às quatro da madrugada. E Karmem pediu para eu acordá-la às seis, ou seja, dali a duas horas, para começarmos logo a filmar, o mais cedo possível.

Deitei no colchãozinho (aquele do cachorro) e senti que nem tinha fechado ainda as pestanas quando o alarme do meu relógio tocou. Já eram seis horas.

- Karmem, acorda, já fiz o seu café da manhã, com café, pãozinho na chapa e tudo que você gosta.

A reação de Karmem era sempre se enfiar debaixo das cobertas para, quando eu tentasse tirá-las, fazer cara de criança abandonada no farol sendo torturada por agentes da Gestapo. Impossível resistir e arrancá-la da cama.

Às nove horas, lá veio Karmem. Irritada.

- Por que você não me acordou?

- Mas eu acordei! A cada quinze minutos, desde às seis! Cada vez você me xingou de uma coisa diferente! A primeira foi monstro da madrugada, a segunda foi coração enegrecido que não respeita o sono alheio, a terceira...

- Chega, eu já lembrei. Cadê o meu café?

- Aqui, quentinho. Como eu sabia que você podia demorar, eu pus na garrafa térmica.

- Bom, na verdade, foi bem melhor eu ter dormido, sabe? Agora estou bem mais descansada. Nossa, eu estaria um trapo se estivesse acordada desde aquela hora!

- Eu acordei às seis...

Mas Karmem ignorava qualquer comentário que não fosse feito sobre ela.

- Bom, agora que já acordei direito, vamos passar o texto antes de sair para gravar?

- Claro. Deixa só eu pegar aqui na malinha da câmera, onde eu guardei as seis cópias. E abri a maletinha. E vi passar, como num filme, o que acontecera na noite anterior. Karmem fechando a mala e me mandando colocá-la logo no carro enquanto eu revisava os textos um a um. É uma lógica fácil, mas no momento foi difícil de compreender. Se a mala fora fechada antes de eu terminar de ler, então não havia como as páginas estarem ali dentro. Certo? Absolutamente certo. Infeliz e irremediavelmente certo.

- Karmem, olha só que engraçado, você não vai acreditar...

E contei que havia deixado os textos, as seis cópias, lá na casa dela, em São Paulo.

Cômico, não?

(silêncio de dez minutos)

- Vamos ver se eu entendi tudo direito.

Ainda havia calma na voz de Karmem.

- Você imprimiu seis cópias de um texto, ou seja, sessenta folhas de papel, para que não faltasse nenhuma para a gente aqui.

Eu só conseguia consentir com a cabeça.

- E deixou as seis lá em São Paulo.

Continuei acenando.

- Hmmm. Bom, você sabe que, assim, pelo menos, a gente não vai perder nenhuma delas.

Que ótimo! Ela estava encarando com bom humor!

- Para você ver, Karmem! Que distraído eu sou...

- Distraído?!? É um desastrado, isso sim! Desastroso! Você acabou com o programa! Eu sei porque você fez isso! Foi para boicotar, não foi? Só porque a minha idéia foi melhor do que a sua! Como você é invejoso! Agora, vamos repetir de ano e nem vamos nos formar por causa desse trabalho! A entrega é para terça-feira, você sabe disso! Como vamos voltar lá em São Paulo para pegar esse texto?

Foi esse treinamento que me deixou com o raciocínio rápido para solucionar problemas. Não foi nada em minhas experiências profissionais; pelo contrário, todos sempre elogiaram como eu conseguia pensar numa solução rápida para tudo, resultado de anos namorando Karmem.

- Karmem, eu vou pedir uma cópia do trabalho, está gravado no meu computador em casa!

- E aqui lá tem computador para acessar e-mail? Não temos nem fax!

- Eu ligo para casa, peço para a minha mãe ditar e escrevo tudo por aqui...

- Não acredito! Ainda mais confiar na sua mãe! Era melhor a gente ir correndo até lá e trazer o texto!

- Calma, que eu tenho tudo sob controle!

- Ah, você sabe que depois quando vier a conta você vai pagar esse interurbano, hein? Da última vez o meu pai, além de jogar em uma praga nas suas gerações passadas, quase jogou uma nas gerações futuras e pode ser que isso afete algum descendente meu!

Ela ainda pensava em um dia ter filhos comigo, o que era positivo.

- Mãe? Bom dia. Tudo bem? Sim, eu fiz boa viagem. Não, não aconteceu nada ruim. É, eu geralmente não ligo quando vou viajar para avisar que cheguei bem e deixo você com o coração na mão por dias, né? Então, essa é a boa notícia, eu estou bem!

Karmem já me lançava o olhar de "vai enrolar quanto?".

- Bom, mãe, olha, por incrível que pareça, eu preciso de um favor seu... Dá para você chegar perto do computador? Tá, vai lá pegar o telefone sem fio.

(silêncio assustador)

- Já? Então, liga o computador... Como? Nesse botãozinho que tem um circulinho, na CPU... Essa parte que fica do lado debaixo, em pé. Pronto? Então, depois que ligar, eu preciso que você abra um arquivo para mim... E me dite o que estiver escrito... Não, eu não estou louco... Sim, eu sei que é interurbano, mas eu preciso... Não, eu não trouxe, acabei deixando tudo lá na casa da Karmem, acredita? Não precisa xingar! Tá, pode ir desligar a panela enquanto ele liga.

E o maior problema de todos surgiu naquele instante.

- Karmem, você pode pegar um caderno para mim e uma caneta?

- Caderno? Caneta? Aqui é casa de praia, não tem nada disso!

Foi uma flecha na minha cabeça.

- Mãe? Espera um pouco. Eu já ligo de novo.

E olhei para aqueles olhos que me fritavam.

- Como assim, Karmem? Não tem um caderno por aqui?

- Você está vendo algum?

E olhei ao redor. Não, não havia nada ali que parecesse um caderno.
Nunca um espaço tão pequeno fora antes revirado com tanto vigor. Reviramos cada móvel, atrás do sofá, sempre esperando que por algum milagre uma árvore de cadernos ou pelo menos folhas de papel sulfite fosse surgir em alguma brecha. Pensei até em anotar tudo na parede, mas como é que eu ia levar depois para a praia? Ainda mais segurando a câmera.

- Karmem, tem alguma venda mercadinho, qualquer coisa aqui por perto?

- Na cidade tem.

A cidade ficava a cerca de cinqüenta quilômetros. Tentamos os vizinhos, mas ninguém tinha ido para a praia naquele fim de semana. Provavelmente tinham visto a previsão do tempo.

Mas a necessidade prova ser mesmo mãe das invenções.

- Olha, eu quero ver agora como é que você vai se virar para a gente gravar esse programa, sem texto!

- Karmem, eu vou dar um jeito...

Fui até a cozinha e achei uma solução.

- Tó. Isso é papel, não é? E está em branco.

- Você é louco?

Uma pergunta interessante, uma vez que eu já namorava Karmem há alguns anos. O pior louco é aquele que escolhe a loucura.

- Você tem outra sugestão? Olha, se abrir, fica com o dobro do tamanho, dá para anotar bastante coisa...

E começamos a abrir, um a um, os filtros de papel para café. O que mais eu podia fazer?

- Bom, Karmem, isso já está resolvido. Agora passa a caneta, que eu vou ligar de novo para a minha mãe...

- Caneta? Quando foi que a gente resolveu isso?

- Mas não tem caneta também? Ninguém escreve nada nessa casa?

A resposta dessa vez veio mais rápida, enquanto Karmem balançava negativamente a cabeça.

- Maquiagem. Karmem, uma daquelas bolsas enormes era de maquiagem, não era?

- Sim, aquela marrom.

- A maior?

- Claro! Eu lá ia aparecer no vídeo com olheiras?

- Você tem lápis de olho?

- De que cor você prefere? Acho que pro seu rosto...

- Karmem, é para anotar o trabalho, não para mim...

- O que, você vai gastar o meu lápis de olho com isso? Eu não acredito! Sabe quanto custaram os meus lápis?

- Eu compro outro, Karmem...

- Bom, então, passa naquela loja do shopping e compra daquela marca importada.

- Mãe? Já deu tempo de abrir o computador, né? Como assim, desligou? Eu demorei muito? Mas vai gastar mais energia ainda para ligar de novo! Vamos lá, no botãozinho com o circulinho... Isso. Não, é uma luz verdinha. Espera que já vai aparecer. Não, não tem problema que fica piscando, é assim mesmo. Não vai queimar a lampadinha! Tem que ligar o monitor também. Essa televisão que fica na sua frente. O botão é igual. Pronto? Agora, clica em "iniciar". Não, arrasta o cursor... Essa flechinha que você mexe com o mouse... Isso. Arrasta para o canto esquerdo inferior da tela. Tá vendo? Clica em iniciar...

A sensação era de estar operando um coração à distância. Só que, em vez de outro médico, era uma dona-de-casa que realizava a operação com as minhas coordenadas.

- Sim, mãe, eu sei que são dez páginas... Mãe. Mãe! Quanto antes a gente começar, mais cedo vamos terminar... Não, a culpa não é dela... Não, mãe, ela não fez... Sim, eu fiz o trabalho todo...

(olhar de reprovação)

- Quer dizer, a idéia foi toda da Karmem. Bom, mas vamos logo fazendo isso, né?

E lá veio todo o texto ditado, enquanto eu anotava com o lápis de olhos nos filtros de papel recém-abertos. Já tentou fazer isso? Desde esse dia, nunca mais andei sem pelo menos um bloquinho de anotações e uma caneta comigo. A cada frase que terminava, minha mãe xingava a mim e a Karmem.

Tive que fazer aquela letrinha bem pequena, pois só tínhamos oito filtros e eu não sabia se seriam suficientes. No fim, espremi tanto que couberam em quatro coadores.

- Mas quem é que consegue enxergar isso escrito aqui?

- Ah, Karmem, não está tão ruim assim, está?

Estava péssimo. Mas não faria diferença. Lembra dos vizinhos que não foram para a praia? Sim, eles realmente tinham ouvido a previsão do tempo. Porque, assim que calçamos os nossos tênis e nos preparamos para sair, com a única pauta de TV em papel de café da história e câmera a postos, ouvimos um trovão. O segundo maior índice pluviométrico do mundo é Ubatuba. Só na Amazônia chove mais do que ali, mais precisamente em cima da casa de praia de Karmem.

- Vamos assim mesmo! Pega já aquela guarda-sol grandão e trate de não tremer a câmera!

- Karmem, como é que eu vou gravar, segurar guarda-sol, carregar texto, nessa chuva?

- Não quero saber!

A chuva ficou tão forte que até Karmem percebeu que não seria possível sair para gravar. A essa altura, a família toda já tinha acordado com o alvoroço. A chuva durou apenas o dia inteiro. Assim que a noite caiu e não haveria mais luz natural para podermos gravar ao ar livre, ela cessou.

Jantamos (ou melhor, eles jantaram enquanto eu comia um pedaço de pão, pois eles insistiam em servir apenas frutos do mar quando iam para a praia, sabendo que eu sou totalmente alérgico) e fomos dormir, com a esperança de que fosse possível gravar tudo no dia seguinte, se não chovesse. Pelo menos o texto estava todo ali e passamos a limpo em um caderno recém-comprado na cidade à noite.

No segundo dia, o domingo, a natureza pareceu estar do nosso lado. Um céu azul limpo, sem nuvens! Sim, ia dar para gravar tudo! Um grito estridente fez trincar as lentes dos meus óculos e a possibilidade de enfim gravar a história daquelas praias de Ubatuba. A princípio, achei que fosse Karmem. Era sua irmã. Olhando no espelho seu rosto inteiro inchado e cheio de perebas. Depois foi a vez de Karmem e sua mãe gritarem também. Intoxicação alimentar. Bendito pedaço de pão! Ainda bem que eu não me arrisco com frutos do mar!

Nenhuma delas aceitou ir para um hospital local, por mais que seus planos de saúde cobrissem o atendimento naquelas cidades. E voltamos para São Paulo. Com o resto do dia livre (e livre mesmo, pois Karmem ficou no hospital e seu pai insistiu que eu não poderia ficar com ela, ainda que não fosse UTI nem nada, pois não era da família), só me restou escrever um outro programa inteiro. Mas no computador, né, que filtro de papel é só para emergência.

E ainda recebi um telefonema de Karmem:

- Chumbiligo, eu já estou melhor. Olha, eu estive pensando. Faz o seguinte, pesquise sobre programas infantis, que eu tive uma idéia. Vou tentar pegar imagens de arquivo da TV com imagens de programas antigos e a gente monta um especial. O que você acha?

- Ótimo, Karmem! Você também não pensou que a gente ainda pode entrevistar, digamos, uma psicóloga infantil para falar sobre o tema? Assim, damos o aval científico.

- Nossa, foi isso mesmo que eu pensei!

- Que bom, porque tem vários consultórios de psicólogas no prédio de escritórios em que trabalho! Eu vou lá e entrevisto uma delas na hora do almoço...

No dia seguinte, à noite, tínhamos um vasto material para editar e montamos o programa. Que tirou nota dez. E ainda guardo os filtros de papel!

19 de nov. de 2008

Respeito

O Vadoberto sempre teve um problema com o peso. Desde cedo, a família italiana acostumou-se a deixar sua barriga sempre cheia, fosse do que fosse. “Criança gordinha é sinal de saúde”, repetia a avó, horrorizada sempre com os amiguinhos magrinhos “esqueléticos, um horror!” do neto.

Chegou na pré-adolescência já com peso de adulto.

Na juventude toda, foi ouvindo de todos (menos da avó) o quanto estava errada sua alimentação.

“Você vai comer isso?”

“Você vai comer tudo isso?”

“Você vai comer tudo isso de novo?”

“Esse daí, se pudesse se prendia à geladeira para não ter que sair do lugar nunca mais.”

“Você só vai comer isso?” (essa última da Nona).

E decidiu fazer regime ao sair do colegial, influenciado tanto pelo mundo da publicidade que estampavam corpos esbeltos, quanto pela própria vontade de ganhar mais confiança.

Foi quando descobriu que os observadores tinham olhos também para as eventuais falhas de seu cardápio.

“Você só vai comer isso?”

“Você não vai comer mais nada?”

“Ai, você anda tão neurótico com a comida...”

“Esse daí, agora é rato de academia, só quer saber de exercícios em vez de viver a vida.”

“E eu que me matei no forno o dia todo!” (novamente da Nona).

Mas o Vadão (pois, apesar deter só um metro e sessenta, tinha o tamanho de um gigante na medição lateral e só era chamado no aumentativo), não se incomodava ainda. Nem quando percebeu que não se respeita um ex-gordinho, pois enxugara mais de trinta quilos.

“Ai, não vai comer o bolo do meu aniversário? Que desfeita! Vai me dar azar...”

“Não vai à nossa pizzada de sexta-feira?”

“Não vai experimentar esse empadão de bacon com provolone?”

“Não vai ao nosso coquetel?”

“O que que eu fiz para merecer um parente assim?” (a Nona).

E obviamente que o jovem ia cedendo, aos poucos. Começou com uma fatia da torta de queijo da Nona (para seu total deleite). Depois, uma lingüicinha não fazia mal a ninguém, não é verdade? E, ai, que dia quente, um sorvete é só para refrescar, nem pode ser classificado como alimento, entra na categoria de reclimatizador de ambiente. O ambiente estomacal, claro.

E o Vadão foi enchendo de novo, recebendo nova dose de comentários absolutamente construtivos quanto aos seus hábitos.

“Ih, ele não tem a menor força de vontade...”

“É um largado mesmo, não liga para o próprio corpo.”

“E eu que apoiei tanto o regime dele!” (sim, a Nona).

Resolveu estudar antropologia para tentar compreender porque nos grupos a que pertencia os indivíduos se ocupavam tanto em apontar os defeitos individuais de cada um em vez de trabalharem nos próprios.

Teve relativo sucesso em suas teses e trabalhos e ganhou da universidade uma viagem para estudar, durante um ano, as tribos indígenas do Norte do país.

Nessas andanças, chegou à tribo dos Makrarema. Os makraremas eram conhecidos por seu tipo físico esguio, o que os prejudicava nos conflitos com outras tribos. Não que fossem de muita luta, mas eram constantemente ridicularizados por não terem o físico imponente.

Imaginem como foi a recepção ao Vadão quando o viram. Os nativos apontavam e diziam ‘pororoco’, que significava “forte como um bisão”, ou “aquele que não dispensa a gemada”.

Surpreso por finalmente estar num ambiente no qual seu sobrepeso era motivo não de chacota, mas de admiração, Vadoberto decidiu ficar mais um pouco. Estudar mais a fundo aquela gente tão diferente.

Não demorou para que a proposta viesse. Os makrarema solicitaram o que, na visão deles, seria um ‘upgrade’ genético. E foi assim que Vadão tornou-se reprodutor oficial da tribo.

Estava feliz da vida e decidido a ficar ali para sempre. Não precisava fazer nada, sequer entendia o que estavam dizendo. Aos poucos percebia olhares diferentes, mas não estava ligando.

Acontece que a vida longe dos alimentos industrializados, do açúcar refinado (e principalmente dos hábitos da Nona), somado à prática sexual freqüente, conseguiu o êxito que anos de terapia, dieta dos pontos e outras tantas tentativas jamais haviam alcançado.

Vadão estava finalmente (e definitivamente) magro.

Os makraremas não gostaram e recearam que aquele fosse o destino dos vários filhos que se desenvolviam no ventre das mães.

Anos se passaram sem que ninguém tivesse notícias do Vadão.

Até que a Nona, preocupada que só ela, foi atrás do neto. Chegou até a região onde se tivera notícias dele por último e dali até o vale habitado pelos makraremas.

Ao ver tanta gente magra (algumas crianças um pouco mais altas, é verdade), a Nona não pensou duas vezes: abriu a bolsa e foi distribuindo a todos uns biscoitinhos de polvilho. Não demorou para que fosse bem aceita, principalmente depois do primeiro almoço de domingo que organizara, e lá ficou. Descobriu que a farinha produzida pelos nativos servia para fazer massas. A banha das capivaras servia de base para outros quitutes, entre doces e frituras.

E foi assim que a Nona se vingou da morte do Vadão, sumindo de vista um dia e deixando para trás a tribo cheia de colesterol.

11 de nov. de 2008

Esquistossomose

- Conta pra eles aquela da mulher que no final descobre que estava sentada num formigueiro!

Karmem contava o fim das piadas antes do começo. Também lia revistas de trás para a frente e sempre iniciava a leitura dos livros pelo último capítulo.

- Como que eu posso fazer a piada agora, se você acaba de contar o final?

- Mas tem o resto ainda, é super engraçada, gente!

Karmem não gostava de textos lineares, com começo, meio e fim. Sempre apreciou mais os filmes cuja ordem cronológica não segue essa regra. E o mesmo raciocínio valia para as piadas.

- Vou te contar uma, então. Uma amiga chegou para a outra e disse “O que é que você tem?”. E ela respondeu “Estou com esquistossomose”. Aí, a primeira disse “Ah, eu não passei em nenhuma faculdade”.

Engasguei com o pedaço de banana que estava comendo e caí no chão de joelhos rindo. Com um largo sorriso, Karmem elogiava a própria brincadeira:

- É engraçada essa piada, né?

- Karmem... Haha... A piada... Hahahahaha... Não é assim... Hehehehehehehe

- Como não?

- É... Hahahahaha Assim... Hehehehehehe... Uma loira encontra uma amiga e diz “Há quanto tempo! Nossa, como você está moderna, careca... O que você tem feito?”.

- Ai, é essa mesma!

- E a amiga responde “Quimioterapia”. Só então a primeira loira responde “Jura? Na PUC ou na USP? Eu não consegui passar em nenhum vestibular...”.

- Haha é engraçada demais, né?

- Sim, mas você percebe que do jeito que você contou não faz o menor sentido?

- Por que não? Eu infringi alguma regra do Sindicato dos Contadores de Anedotas por acaso?

- Não que eu saiba.

- Então pronto. Essa foi a minha interpretação da piada.

- Mas como é que ‘quimioterapia’ vira ‘esquistossomose’, Karmem? E desde quando essa doença remete a algum curso de nível superior?

- Você sempre se acha o melhor contador de gracejos do mundo.

- Karmem, entenda, a piada tem que ser contada na ordem certa, senão não funciona.

- Sabe do que mais?

- O quê?

- Aposto que você riu mais da minha versão da piada do que da original.

- Eu ainda estou rindo!

- Então, ela é melhor que a primeira, não é?

E a verdade é que ainda rio com a versão ‘esquistossomose’.

7 de nov. de 2008

Mímica

Karmem abria os braços em forma de cruz.

- A Última Tentação de Cristo?

- Não! Presta atenção.

- ‘A Paixão de Cristo’?

- Não!

Estávamos brincando de mímica com o tema ‘cinema’. E a namorada ficava estática, crucificada na parede. Mas nenhuma das minhas tentativas em decifrar sua expressão corporal tinha sucesso.

- ‘Jesus Cristo Super Star’?

- Passou longe, longe...

- ‘A Lenda do Papai Noel’?

- O que isso tem a ver?

- O Natal é a comemoração do nascimento do Cristo, achei que fosse uma referência.

- Não tem nada a ver com o Natal, poxa, tente com mais vontade.

- ‘Indiana Jones e a Última Cruzada’?

- Mas o que que isso tem a ver?

- Nesse filme eles estão buscando o santo graal...

- Nossa, como sua imaginação é fértil! Pena que errada. Vou mudar o gesto para deixar mais fácil para você.

E postou-se em posição de sentido, mas com o braço levantado em reverência.

- Mas é o mesmo filme ainda?

- Sim.

- Ah, calma! Isso é a saudação do exército alemão ao Hitler. Hum.... Já sei, ‘A Lista de Schindler’!

- Errou!

- ‘Primavera para Hitler’?

- Não!

- ‘O Pianista’?

- E o Hitler tocava piano?

- Não, mas O Pianista é sobre a segunda guerra mundial, achei que fosse.

- Você tem muita criatividade, mas precisa ter foco, sabia?

- Ai, Karmem, ta muito difícil! Cruz, nazismo, obviamente é um filme sobre a segunda guerra, correto?

- Incorreto. Incorretíssimo!

Nada era decifrável para Karmem, cujas conexões cerebrais ligavam fatos completamente desconexos.

- Vou facilitar ainda mais, para ver se você consegue.

A performance agora incluía, depois da saudação nazista, um gesto de violência no ar, como se estivesse batendo em alguém. Karmem então apontava para o ‘boneco invisível’ que apanhava.

Eu precisava entender a qual filme ela estava se referindo e não era apenas pelo jogo. Karmem testava minhas capacidades o tempo todo e seu espírito competitivo impossibilitava que ela desistisse no meio de qualquer processo.

- Você quer que eu lembre do que os alemães não gostavam, é isso?

- Sim, sim! Finalmente você entendeu!

- O povo mais perseguido por eles foi o judeu...

- Isso, agora vai!

- Judeus?

- Nossa, finalmente!

- O filme ‘O Judeu’, da propaganda nazista, que vimos na aula de história da comunicação?

- Não, vá com calma, que não é esse ainda. É só um pedaço do título.

Já tinha a informação de que a palavra ‘judeu’ fazia parte do nome do filme. Não que isso esclarecesse alguma coisa. O gesto seguinte foi mais simples, com o dedinho apontando para cima.

- Dedo para cima? Algum filme da Carmem Miranda?

- De onde você tirou isso?

- Esses dedinhos, assim, como turista no Carnaval...

- Ih, estava indo bem, agora desandou...

E Karmem agora olhava para cima, apontando insistemente.

- Teto? Telhado? Luz? Céu?

- Aí, acertou!

- Céu?

- Sim!

- ‘Judeus no céu’ é o nome do filme?

- Não, agora vai decodificando, eu tenho certeza que você já viu esse filme e vai conseguir.

Não consegui.

- E aquela história da cruz?

- Jesus era judeu, não era?

- Mas você queria que eu remetesse a figura do Cristo aos judeus em vez dos cristãos? Isso faz algum sentido?

- E quando foi que eu fiz sentido?

- Bom, vamos lá. Judeus + céu. O paraíso? A terra prometida?

- Tá frio, frio... Quase congelando... Tente brincar mais com as palavras!

Aí compreendi.

- ‘Judeu’ não é exatamente a palavra, certo?

- Bingo!

- Judeu... Jud.. Ajuda?

- Tá quase lá, tá quase lá!

- A ajuda veio do céu?

- Acertou! Que demora, hein? Um filme tão simples.

- A ajuda veio do céu?

Repeti, pois não acreditava.

- Sim, você lembra? Aquele filme dos robozinhos que vinham de outro planeta.

- Karmem, o nome do filme não é esse. É ‘O Milagre Veio do Espaço’.

- Você sempre consegue decifrar o que eu estou pensando!

- Para falar de um filme de ficção científica e fantasia sobre robôs em formato de nave espacial você fez a mímica de cruz e da saudação nazista?

- Não reclama, que funcionou direitinho. Agora é sua vez! Escolha um filme e faça a mímica.

Pensei rápido e me posicionei na frente do sofá.

- ‘Labirinto’, com o David Bowie.

- Mas eu nem fiz o gesto ainda!

- Não precisa, eu conheço você.