19 de nov. de 2008

Respeito

O Vadoberto sempre teve um problema com o peso. Desde cedo, a família italiana acostumou-se a deixar sua barriga sempre cheia, fosse do que fosse. “Criança gordinha é sinal de saúde”, repetia a avó, horrorizada sempre com os amiguinhos magrinhos “esqueléticos, um horror!” do neto.

Chegou na pré-adolescência já com peso de adulto.

Na juventude toda, foi ouvindo de todos (menos da avó) o quanto estava errada sua alimentação.

“Você vai comer isso?”

“Você vai comer tudo isso?”

“Você vai comer tudo isso de novo?”

“Esse daí, se pudesse se prendia à geladeira para não ter que sair do lugar nunca mais.”

“Você só vai comer isso?” (essa última da Nona).

E decidiu fazer regime ao sair do colegial, influenciado tanto pelo mundo da publicidade que estampavam corpos esbeltos, quanto pela própria vontade de ganhar mais confiança.

Foi quando descobriu que os observadores tinham olhos também para as eventuais falhas de seu cardápio.

“Você só vai comer isso?”

“Você não vai comer mais nada?”

“Ai, você anda tão neurótico com a comida...”

“Esse daí, agora é rato de academia, só quer saber de exercícios em vez de viver a vida.”

“E eu que me matei no forno o dia todo!” (novamente da Nona).

Mas o Vadão (pois, apesar deter só um metro e sessenta, tinha o tamanho de um gigante na medição lateral e só era chamado no aumentativo), não se incomodava ainda. Nem quando percebeu que não se respeita um ex-gordinho, pois enxugara mais de trinta quilos.

“Ai, não vai comer o bolo do meu aniversário? Que desfeita! Vai me dar azar...”

“Não vai à nossa pizzada de sexta-feira?”

“Não vai experimentar esse empadão de bacon com provolone?”

“Não vai ao nosso coquetel?”

“O que que eu fiz para merecer um parente assim?” (a Nona).

E obviamente que o jovem ia cedendo, aos poucos. Começou com uma fatia da torta de queijo da Nona (para seu total deleite). Depois, uma lingüicinha não fazia mal a ninguém, não é verdade? E, ai, que dia quente, um sorvete é só para refrescar, nem pode ser classificado como alimento, entra na categoria de reclimatizador de ambiente. O ambiente estomacal, claro.

E o Vadão foi enchendo de novo, recebendo nova dose de comentários absolutamente construtivos quanto aos seus hábitos.

“Ih, ele não tem a menor força de vontade...”

“É um largado mesmo, não liga para o próprio corpo.”

“E eu que apoiei tanto o regime dele!” (sim, a Nona).

Resolveu estudar antropologia para tentar compreender porque nos grupos a que pertencia os indivíduos se ocupavam tanto em apontar os defeitos individuais de cada um em vez de trabalharem nos próprios.

Teve relativo sucesso em suas teses e trabalhos e ganhou da universidade uma viagem para estudar, durante um ano, as tribos indígenas do Norte do país.

Nessas andanças, chegou à tribo dos Makrarema. Os makraremas eram conhecidos por seu tipo físico esguio, o que os prejudicava nos conflitos com outras tribos. Não que fossem de muita luta, mas eram constantemente ridicularizados por não terem o físico imponente.

Imaginem como foi a recepção ao Vadão quando o viram. Os nativos apontavam e diziam ‘pororoco’, que significava “forte como um bisão”, ou “aquele que não dispensa a gemada”.

Surpreso por finalmente estar num ambiente no qual seu sobrepeso era motivo não de chacota, mas de admiração, Vadoberto decidiu ficar mais um pouco. Estudar mais a fundo aquela gente tão diferente.

Não demorou para que a proposta viesse. Os makrarema solicitaram o que, na visão deles, seria um ‘upgrade’ genético. E foi assim que Vadão tornou-se reprodutor oficial da tribo.

Estava feliz da vida e decidido a ficar ali para sempre. Não precisava fazer nada, sequer entendia o que estavam dizendo. Aos poucos percebia olhares diferentes, mas não estava ligando.

Acontece que a vida longe dos alimentos industrializados, do açúcar refinado (e principalmente dos hábitos da Nona), somado à prática sexual freqüente, conseguiu o êxito que anos de terapia, dieta dos pontos e outras tantas tentativas jamais haviam alcançado.

Vadão estava finalmente (e definitivamente) magro.

Os makraremas não gostaram e recearam que aquele fosse o destino dos vários filhos que se desenvolviam no ventre das mães.

Anos se passaram sem que ninguém tivesse notícias do Vadão.

Até que a Nona, preocupada que só ela, foi atrás do neto. Chegou até a região onde se tivera notícias dele por último e dali até o vale habitado pelos makraremas.

Ao ver tanta gente magra (algumas crianças um pouco mais altas, é verdade), a Nona não pensou duas vezes: abriu a bolsa e foi distribuindo a todos uns biscoitinhos de polvilho. Não demorou para que fosse bem aceita, principalmente depois do primeiro almoço de domingo que organizara, e lá ficou. Descobriu que a farinha produzida pelos nativos servia para fazer massas. A banha das capivaras servia de base para outros quitutes, entre doces e frituras.

E foi assim que a Nona se vingou da morte do Vadão, sumindo de vista um dia e deixando para trás a tribo cheia de colesterol.

Um comentário:

henrique teixeira disse...

Nossa, qeu final hein?

...

fiquei triste...

xx henriqeu teixiera

PS: Apesar de adorar finais dramaticos
risoso