8 de out. de 2008

Berebas

Uma de minhas atribuições enquanto namorado de Karmem era escolher e comprar todos os presentes para a família dela em ocasiões como Natal, aniversários, dia das mães e afins. Mas não podia ser qualquer presente. Tinha que ser criativo, diferente, original, algo que levasse a pessoa às lágrimas de emoção e ficasse para sempre guardado na memória. E também era Karmem quem assinava o cartão e entregava o presente (muitas vezes sem nem saber qual o conteúdo do embrulho) e ficava com o crédito.

E ela sempre me dava um prazo razoável para comprar as coisas. Como na primeira vez em que participei da festinha de um sobrinho que ela tinha no interior.

- Você já está vindo para cá?

- ‘Cá’ onde, Karmem? Onde você está?

- Como, onde eu estou? Já cheguei aqui em Cabritópolis.

- Cabritópolis? Onde fica isso? O que você está fazendo aí?

- Você esqueceu?

- Esqueci do quê?

- É amanhã o aniversário do meu sobrinho! Eu já estou aqui.

- Como, amanhã? Você não me disse nada!

- E precisa dizer? Todos os anos ele faz aniversário no mesmo dia!

- Mas, Karmem, não faz nem um ano que a gente namora, como eu ia saber?

- Oras, no ano passado a gente já era amigo e eu disse que vinha para cá por causa do aniversário dele...

Karmem não conseguia entender que alguma pessoa não tivesse guardado na memória um fim de semana sem ela, mesmo que nem a conhecesse, como se sua presença fosse essencial para o bom funcionamento de qualquer atividade na vida.

- Bom, de qualquer forma, você foi dispensada do trabalho por causa disso?

Todos os empregos de Karmem eram extremamente tolerantes em relação a horários e presença na empresa. Ela podia se ausentar, por exemplo, para passar a manhã com a cachorrinha que estava deprimida e se sentindo solitária. Por isso ela não compreendia porque eu tinha de bater cartão de ponto ou permanecer na empresa todo o horário de trabalho. Mas isso não vinha ao caso. O pior era a tarefa que viria.

- Você já comprou a bereba?

- O quê?

- A bereba. A criança está esperando!

- Eu tenho que levar uma bereba para o seu sobrinho?

- Não se faça de desentendido...

- Mas eu não estou entendendo mesmo...

- Eu falei que o menino gosta da bereba e que você ia trazer. Você sabe a quantos quilômetros estamos da capital?

- Acho que uns quinhentos, não é?

- Então, não tem bereba para vender aqui. E agora o garoto já está todo esperançoso, achando que você vai trazer para ele!

- Se é bereba que ele quer, eu levo uns dez quilos de chocolate e faço ele comer – vai nascer um monte de berebas e espinhas na pele dele...

- Só mesmo um monstro como você para querer intoxicar a criança! Você vai fazer isso com o nosso filho também?

- Mas a gente nem tem filho...

- E acho que nem vamos ter, por que se é assim que você imagina que vai cuidar dele...

- Podemos ser mais práticos?

Não podíamos. Karmem nunca era prática.

- Eu vou ter que ir até Cabritópolis?

- Não, se você der um jeito de que a bereba chegue aqui sozinha...

- São cinco horas de viagem, eu vou ter que ir direto daqui e nem trouxe mala, nem nada...

- Já que você não comprou a bereba ainda, aproveita, passa no shopping, compra uma malinha, umas roupas e vem.

Karmem era uma pessoa tão ligada à natureza que acreditava que qualquer produto, tal qual flores e frutos, brotavam nas prateleiras das lojas, bastando colhê-los e levá-los para casa.

- E afinal, o que é uma bereba?

- Você não sabe?

- Não...

- Não é você o expert em crianças, que passa o dia lendo revistinha?

- Eu divulgo uma fábrica de chicletes, revistas infantis são parte do meu trabalho...

- Vou fingir que acredito. E nunca leu nada sobre as berebas?

- Não, Karmem, não...

- Bom, se vira.

- Faz um favor, então? Chama o menino...

Tenho que reconhecer que o garoto foi a única pessoa da família de Karmem (além da cachorra) que gostava de mim. Ele adorava ficar no meu colo. Também porque ali ele podia soltar puns à vontade. Todas as outras pessoas pensavam que era eu e, quando eu tentava disfarçar, ainda me olhavam com aquela cara que diz “além de peidar, ainda vai tentar botar a culpa na criança, que absurdo!”.

- Oi, tio! A Karmem já me falou o que você está trazendo prá mim! Qual que você escolheu?

- Olha, o que foi que ela disse que eu vou levar?

- Ah, eu já sei! É um blerleice!

- Berleis?

- Não, blerleice!

- E o que é um blerleice?

- Blerleice é o brinquedinho que eu quero!

Pelo menos agora eu já sabia que era um brinquedo.

- E como é esse brinquedo?

- É um blerleice! Eba, ele vai me trazer um blerleice!

- Vamos fazer assim: você me diz como é o blerleice e como você brinca com ele, que eu digo se é o que eu comprei...

- Ah, mas é muito fácil! A gente usa o blerleice para brincar de blerleice mesmo!

Lá ia eu cavar a informação.

- E como é o blerleice?

- O blerleice é um blerleice, ué!

- Mas de que cor é ele?

- Ah, tem blerleice de todas as cores! Eu quero o blerleice amarelo, vermelho e roxo, que nem o do menino.

- Que menino?

- O menino que brinca de blerleice no desenho...

Pronto! Era um brinquedo de algum desenho animado da TV.

- E como chama o desenho que tem esse menino?

- Blerleice! Aí, o menino usa o blerleice com os amigos dele, que têm blerleice também, e os blerleices apostam corrida, batem uns nos outros, mas eu quero o blerleice do menino que é o principal, que é o mais forte...

- Você sabe me dizer pelo menos em que programa que passa esse desenho?

- É naquele que passa o blerleice!

- Mas você consegue me dizer o número do canal?

- Ah, eu não aprendi ainda número na escola... Mas eu passo o recreio inteiro brincando de blerleice, só que sem blerleice, porque não tem blerleice aqui em Cabrito... Eu vou ser o único da escolinha que vai ter blerleice! Eu te adoro!

Tive que desligar o telefone sem conseguir mais informações, pois meu chefe já estava fazendo o olhar que acusa os matadores de trabalho. Depois de pesquisar nos sites de canais infantis, finalmente achei o desenho. Blade Racers®. Uma animação na qual pré-adolescentes treinavam coelhinhos fofos para pilotar carros assassinos que disputavam corrida e assassinavam uns aos outros no trajeto com lâminas e armas de fogo saindo das laterais. Miniaturas desses carros (com lâminas de borracha e armas que disparavam água) eram comercializados como brinquedos para crianças. Eu havia desvendado o que era o ‘blerleice’.

Agora havia mais duas etapas da tarefa: comprar o brinquedo, acertar o modelo do protagonista e ainda conseguir chegar a Cabritópolis, o que levava cinco horas de viagem. Tive que executar o plano proposto por Karmem e passar pelo shopping. Para minha sorte (ou azar, pois isso possibilitava que Karmem sempre fizesse pedidos como esse) havia um localizado bem ao lado da estação rodoviária.

“Pelo menos”, pensei, “acaba de fazer uma semana que se passou o dia das crianças, vou encontrar os brinquedos com desconto”.

- Blade Racer®? De qual fase?

- Fase, como assim?

- O Blade Racer® tem mais de 50 fases diferentes, cada uma com mais de 300 modelos. Tem a Rocket Fire, a Speed Maximum, a Fast as Hell... De qual o senhor quer ver?

- Qual que está passando agora na televisão?

- Depende. Na TV aberta é a Quick Total Descontrol, mas na TV a cabo todas as outras estão sendo exibidas. Sabe que agora tem canais específicos para esse tipo de desenho? Alguns até passam com o som original, em japonês.

Resolvi arriscar e tentar a fase da TV aberta.

- Vamos ver os modelos dessa, então?

- Dessa estão esgotados. Aliás, de quase todos estão esgotados. O dia das crianças foi semana passada, sabia? Não tenho mais quase nenhum... Só esse modelo, o do Gart Jenron, pilotado pelo coelhinho Willy Fluffy.

Era prateado e não amarelo, vermelho e roxo, por isso concluí que não era o correto.
Depois de rodar por todo o shopping, não consegui achar nenhum Blade Racer® amarelo, vermelho e roxo. Mas eu não podia chegar de mãos abanando, ainda mais sendo que Karmem havia prometido que eu levaria o blerleice. Foi quando minha criatividade resolveu aflorar. Levei o Blade Racer® prateado mesmo e passei numa farmácia.

- Vocês têm esmalte de unha amarelo, vermelho e roxo?

Ainda bem que a moda era pintar as unhas de várias cores! Agora eu tinha apenas quinze minutos para comprar uma troca de roupa, uma mochila, o bilhete e ainda pegar o ônibus. Com Karmem eu realmente aprendi a fazer tudo na velocidade máxima, ‘Fast as Hell’.

No meio do caminho, toca o meu celular:

- Você está com a bereba ou não?

- É blerleice! Aliás, é Blade Racer®. Sim, eu consegui achar.

- Ótimo. A gente vai buscar na rodoviária, então, porque o menino está querendo muito...

- Mas, Karmem, eu ainda não pintei...

- Pintou o quê?

- Nada. A gente se vê quando eu chegar.

E lá fui eu, com muita paciência, fazendo desenhos de camuflagem no carrinho com os esmaltes, depois de abrir com bastante cuidado para não romper nenhum lacre de proteção. Ainda bem que eu tinha ainda trezentos quilômetros pela frente para completar a operação. Até eu me impressionei com o resultado final!

Chegando lá, de madrugada, o sobrinho de Karmem veio correndo ao meu encontro. Ele queria o brinquedo.

- Pronto! Tá aqui o seu ‘blerleice’!

- Blerleice? Tia Karmem, você não falou com ele?

- O quê?

- Você não leu a minha mensagem de texto?

- Não sei, o celular estava no silencioso, tinha gente querendo dormir no ônibus...

- Bom, ontem à noite estreou um desenho novo, o mongo dongo, ele agora não gosta mais de blerleice... E eu prometi que você ia conseguir trocar o brinquedo!

E a criança corrigiu:

- Não é mongo dongo, é monsblongo, tia!

Por sorte, o mesmo ônibus que havia me levado estava saindo de volta para São Paulo e eu pude retornar para procurar o novo brinquedo (que só estaria disponível nas lojas dali a três meses). Pelo menos, ninguém nunca descobriu que eu havia falsificado o Blade Racer®!

2 comentários:

Unknown disse...

KKKKK
Não acredito que isso tenha realmente acontecido!!

Kkkkkkkk

giselda disse...

eu acredito, e até sei quem são os personagens da vida real. o difícil é entender, ha ha ha!