23 de set. de 2008

Domingo como outro qualquer

- Por que você não gosta de ir ao teatro, meu querido?

O comentário de Karmem despertou uma série de lembranças. Quase todas da primeira vez em que fomos ao teatro. Por “Teatro popular, entrada gratuita”, leia-se: “agüente esperar mais de três horas na fila e decidiremos se você merece assistir à peça”.

Chegamos cinco horas antes do início da peça (isso porque eu adiantei todos os relógios da casa de Karmem em mais de oito horas).

- Ah, meu cumprido, não acredito que você me enganou... Mas tudo bem. A gente fica aqui, namorando, né?

- É... Mas entenda que eu fiz isso para a gente pegar os melhores lugares.

Realmente, não havia mais ninguém na fila e ficamos namorando. Geralmente eu tinha cerca de vinte minutos de beijos intensos que calejavam a língua até que Karmem começasse a reclamar de alguma coisa. Ela queria sentar. Queria água. Queria ir ao cabeleireiro. Queria comprar um par de sapatos. Queria que eu pagasse pelos sapatos e pelo cabeleireiro. Recusei um a um, explicando que não era possível sair da fila, pois logo os seguranças passariam distribuindo as senhas. Mas ela esperou até que a fila já tivesse pelo menos cinqüenta pessoas para me fazer o pedido mais esdrúxulo do dia:

- Milococo, preciso peidar. Você assume?

- Como?

- É, já que eu tô vendo que você não vai me deixar sair para ir ao banheiro, vou ter que soltar aqui mesmo, mas não quero passar vergonha.

- E você quer que eu faça o quê? Que comece a gritar: “gente, fui eu!” quando o pessoal sentir o cheiro?

- Não, seu bobo. Basta fazer desesperadamente cara de quem está querendo dizer que não foi, mas não consegue achar um jeito de dizê-lo. Entendeu?

- Você não prefere ir ali, perto daquele gordinho?

- Por quê?

- É a regra principal de quem desejar soltar pum em público, ficar ao lado de algum gordinho. Todo mundo vai achar que foi o gordinho e não você. Existe uma crença coletiva, baseada na hipótese de que todo gordo come mais, que acredita que as pessoas brancas, heterossexuais, de classe média e, principalmente, magras não liberam gases intestinais. Puxa, isso deveria ser ensinado na escola – salva a gente de muitas situações embaraçosas.

- Mas e por que você acha que eu só faço isso quando você está do meu lado?

- Você não está querendo dizer que...

- Sim...

- Não! Eu sou o gordinho! Tudo bem, pode soltar...

- Tarde demais, agora já foi.

E Karmem fez cara de quem está assistindo a um concerto de violinos enquanto eu, surpreso, tentava desesperado dizer com o olhar “Não fui eu! Não fui eu!”, o que só fez com que todos me atribuíssem a culpa.

Felizmente a fila era a céu aberto e logo aquilo passou. Mas não as vontades de Karmem.

- Olha aqui, eu já não agüento mais! Vou comprar uma garrafa de água ali na padaria da esquina.

- Mas Karmem, faltam só três horas e meia para começarem a dar as senhas!

- Dá tempo, então, é rapidinho...

- Mas e se começarem a dar as senhas antes?

- Você diz que eu fui só ali comprar a garrafinha de água e já volto, ué. O que tem de difícil nisso?

- Você não conhece os seguranças daqui, Karmem! Eles foram treinados para não deixarem nem a própria mãe furar a fila! Quando alguém diz que está esperando outra pessoa, eles disparam um cronômetro e aguardam por trinta segundos! Se o esperado não aparece, eles levam o que está esperando para um quartinho nos fundos do teatro...

- E o que fazem com ele?

- Não se sabe. Ninguém nunca voltou para contar.

- Ah, não quero saber! Eu vou só até ali, vai dar tempo, e você fique esperando aqui e vê se finge que é macho e pega a senha para mim se o bundão do segurança passar.

- Karmem, não! Não vá!

Para minha surpresa, Karmem voltou. Mas não para ficar:

- Me empresta seu cartão? A minha carteira ficou na outra bolsa...

Quando um homem sabe dominar a mulher que tem, dá-lhe ordem de parar com frescura e deixar de ser folgada. Assim, eu disse:

- Claro, docinho. Toma. A senha você já sabe, né?

Cento e quarenta minutos depois, comecei a questionar se teria sido uma boa idéia deixar Karmem solta com o meu cartão. Concluí que não quando vi os seguranças começarem a dar as senhas. Três deles, quatro, se contarmos com o dobermann que vinha junto com rosnando para o pessoal da fila, todos mais altos do que eu, com os cabelos raspados à máquina e uma discreta suástica tatuada na nuca. Todos, inclusive o cachorro.

- Eu estou com a minha namorada... – balbuciei.

- Onde ela está? - gritou um deles.

- A-ali, c-comprando ág-gua...

O segurança ergueu o punho e eu fechei os olhos para só ouvir um ‘tic’: o cronômetro estava correndo!

Para minha sorte, Karmem possuía o estranho dom de aparecer nas horas certas – nunca na hora marcada, entenda bem – e surgiu atrás dele. O cronômetro foi parado e recebemos as senhas.

- Ufa! Mas o que foi que aconteceu? Por que demorou tanto? E cadê a água?

- Água? Ah, a água! Já tomei. Sabe, foi a primeira coisa que eu fiz, comprei a água lá na padaria. Aí, quando eu estava voltando, vi aquela loja de sapatos que estava em promoção...

- Sapatos? Mas não tem loja de sapatos no caminho até a esquina!

- Eu sei, é que eu me enganei, acabei saindo pela porta da outra rua e fui seguindo em frente mais ou menos uns sete ou oito quarteirões até me dar conta de que não estava na Paulista... Aí, já viu, né? Ainda bem que o comércio agora abre aos domingos!

E de fato eu via. Via cinco sacolas em suas mãos e imaginava a minha conta às moscas no banco.

Mais alguns minutos e finalmente conseguimos entrar na sala. Sentamos nos lugares numerados depois que consegui convencer Karmem de que G-50 não dava no mesmo que J-05. Senti as pernas descansarem por algum tempo e continuamos com os beijos de garganta até ouvirmos uma voz fininha, na fileira de trás:

- Puxa, assim eu não vou conseguir enxergar...

Karmem não gostou do comentário e fez outro, fazendo questão de falar alto para a moça ouvir:

- Essa sala é tipo estágio!

- Estádio, Karmem! Estádio!

- Ou isso! A fileira de trás é mais alta que essa, eu que não vou ficar me abaixando só por que uma pigméia resolveu vir ao teatro! E onde já se viu ficar reclamando dos outros? Por que não cresce e aparece? – tudo isso sem olhar para trás.

Como a curiosidade me é mais peculiar que à Karmem, olhei. E morri de vergonha. Com as sacolas nas mãos, tentei dizer a Karmem de uma característica (marcante!) da moça que sentava atrás dela. Fui apontando para as letras nas sacolas e soletrei A-N-A.

- Ana? Quem é Ana? Você conhece ela? É sua amiga?

- Karmem, o segundo ‘A’ tem til.

- Tio?

- Não, til!

- Ana é a mulher do seu tio?

- Não, Karmem, é uma anã!

Os grandes olhos de Karmem pareciam brilhar. Eu estava prestes a descobrir a estranha reação que os anões tinham sobre Karmem. Desde que os vira pela primeira vez, na Montanha Encantada, quando tinha três anos e saiu do barquinho para correr até os anõezinhos da Branca de Neve, Karmem sentia-se obrigada a esticar o braço, tocá-los no nariz e soltar uma gargalhada de muitos decibéis. E foi o que ela fez. Depois, coube a mim pedir desculpas, enquanto Karmem se ajeitava para permitir a visão da peça à anãzinha e tentava parar de rir.

O terceiro sinal soou e a peça começou. Perto do que já tínhamos vivido até ali só naquele dia, a peça foi tediosa. Ela retratava uma outra visão de Hamlet, focando na personagem Ofélia, com um time de vinte atrizes, cada uma interpretando uma face da personagem, entende? Não demorou para Karmem fazer palhaçadas. Pular na cadeira. Introduzir canudinhos no nariz. Depois tentar colocar os canudinhos na minha boca. Pedir para eu engolir uma bala achada no chão do teatro. Ameaçar rir da anã outra vez.

Menos de quinze minutos de peça e as luzes se acenderam. Os seguranças do teatro voltaram, desta vez com três dobermanns. Nos levaram até um quartinho nos fundos, iluminado apenas por uma lamparina a querosene.

- Então, vocês estavam rindo numa peça trágica?

Como eu já disse, Karmem tinha muita sorte. Naquela hora, vimos um sujeito, com longas barbas e cabelos, como se não os cortasse há anos, sair correndo de um canto escuro do quarto, com correntes nas mãos, e gritando:

- Mas eu juro que ela só foi no banheiro! Bando de loucos! Aposto que a peça já acabou!

- É o Algemiro, de novo! Peguem-no!

E saíram todos, seguranças e cachorros, com aparelhos de dar choque nas mãos, atrás do Algemiro, que eu desconfio que tenha ido assistir a uma peça com Cacilda Becker algum dia. Karmem, que sempre teve mais reflexos do que eu (vai ver por isso passava tanto tempo em frente ao espelho), agarrou minha mão, as sacolas e saiu correndo.

Ofegante, entramos no metrô para ir embora.

- Desculpa, Karmem, deu tudo errado...

- Tudo errado? Mas eu adorei! Vamos de novo no domingo que vem?

Meu único consolo foi pensar na lição que eu havia aprendido muito bem naquele dia e concluir “Bom, já que eu vou levar a culpa mesmo, vou aproveitar e relaxar”.

- Nossa!

- O que foi, Karmem?

- Acho que soltei um pum sem perceber!

- Será?

E fiz cara de quem está esperando o elevador.

2 comentários:

Unknown disse...

Adorei, pra variar!
Mas ainda espero a continuação da história do casamento...
Kkkkkkk
kisses

Unknown disse...

kkkkkkk essa do peido e do gordinho foi demais!
Botei no meu blog um link para o seu.
Beijos!