16 de nov. de 2009

Censurado - Aracy e a ameaça do vírus

Caros leitores,

Como alguns de vocês estavam sabendo, eu iria colaborar com uma revista focada no público jovem. 'Iria' mesmo e não vou mais e explico o porquê.

Texto pronto, diagramado no 'boneco' (espécie de modelo pré-impressão feito para ver como vai ficar a revista final), a idealizadora da publicação mostrou para um anunciante que considerou o tema pesado para o público-alvo.

Decerto este anunciante acredita que ignorando os problemas do mundo eles passam automaticamente a não mais existir. Na minha opinião é justamente o contrário: quanto mais informação se tiver sobre aquele assunto, mais fácil ficará combatê-lo. Mas quem sou eu?

Desconheço qual seja a marca ou mesmo o produto desta empresa, mas não me surpreenderia nada saber que a própria deve investir milhares de reais em marketing social - tudo em nome de construir uma imagem politicamente correta e nada mais.

Triste saber que ainda existe, sim, muita censura no mundo. Mais triste ainda saber que esse veto não aconteceu por motivos políticos, religiosos ou morais e sim para não macular o lindo mundo perfeito que a publicidade quer nos fazer acreditar que passaremos a habitar ao comprar seus produtos. Como se adquirir uma margarina, um sapato, um carro ou um par de óculos escuros da moda nos tornasse imortais e imunes a quaisquer mazelas.

Como este blog tem compromisso única e exclusivamente com os seus leitores (até porque não temos patrocínio), segue o texto abaixo. Espero que gostem e, acima de tudo, que entendam a mensagem.

Aracy e a ameaça do vírus

Aracy chegou já em prantos.

- Ai, Cris! Estou com um problema horrível.

- O que foi, gata? Você estava tão aflita ao telefone que eu mal tive tempo de dispensar o Charles para vir te ver. E que história é essa dele não poder vir junto?

- Vou ser direta: estou com medo de estar com HIV.

- Aracy, o que a senhora andou fazendo? Ou melhor, o que a senhora ficou parada fazendo, com quem e em que lugar?

- Lembra daquela viagem que eu fiz no final do ano passado?

- Sim, aquela que você acabou ficando com o amigo da irmã do vizinho da sua prima?

- Irmão da amiga da vizinha do meu primo.

- Isso.

- Descobrimos que o rapaz está com o vírus.

- Ai, ai, ai. Mas foi só uma ficada, não foi?

- Sim, foi.

- Então, tudo bem. Essas coisas não se transmitem no beijo.

- E quem disse que foi só beijo?

- Não foi só uma ficada, criatura?

- Sim, então. Ficar vai um pouco além do beijo.

- Ai, então me atualiza que eu fui adolescente lá nos anos 90, quando ficar era só beijo.

- O meu ficar é um pouco mais, digamos, abrangente.

- Ai, sua louca. E você não usou proteção?

- É claro que eu usei proteção. Vai que eu engravido, né?

- Então, para quê ficar tão encanada?

- Digamos que eu não tenho óvulos na garganta.

- Mas ele chegou a...

- Eca! Não, claro que não. E vai dizer que você usa camisinha para isso?

- Preservativos saborizados com tecnologia de ponta, meu amor. Já chupei com sabor
de morango, damasco, lima-limão, abacate, carne-seca, curry, ricota... Se bem que esse último eu acho que foi sem proteção mesmo.

- Dá para parar de falar besteira enquanto eu estou com um problema desses?

- Querida, eu já sei o que você precisa. Está com o bilhete de metrô aí?

- Sim. Você acha que já é motivo para eu me atirar na frente dele?

- Não, mas se você não parar de paranoia eu te jogo. O que você precisa é informação. Vem comigo.

Cris pacientemente conduziu a amiga a um Centro de Testagem e Aconselhamento (www.aids.gov.br/fiquesabendo). Aracy tinha a certeza de que todos a olhavam para com compaixão por ser uma portadora do vírus e logo foi conduzida para o atendimento.

- Pode me contar, doutora. Estou preparada. Fui infectada?

- Isso só saberemos depois do teste. Fica pronto em vinte minutos.

- Rápido assim?

- Sim, com a tecnologia de hoje é possível detectar a infecção por HIV muito rápido e
usamos os testes de dois laboratórios, para ter certeza. Vai ser só uma picadinha.

- Ui!

- Calma. Agora, me diga, por que você está aqui hoje?

- Então, doutora, eu 'mantive contato', a senhora entende, foi assim, uma vez só, mas eu cheguei a colocar a boca e aí, ferrou tudo de vez, porque isso é grave, né, é possível a gente pegar só de encostar naquele líquido que sai...

- Pode parar. Quando foi isso?

- Já tem oito meses.

- Ótimo. A janela para o teste dar errado hoje é de no máximo seis meses, mas a esmagadora maioria dos casos positivos são detectados em dois meses.

- Ai, que angústia!

- E como você sabe que o rapaz em questão está infectado? Ele mostrou o teste para você?

- Não, eu nem tenho mais contato com ele. Mas a gente ouviu dizer que ele tem perdido muito peso ultimamente.

- E em vez de achar que ele está de dieta essa turma da fofoca paralela preferiu sentenciar que ele está com HIV.

- Exato. Nossa, a senhora é boa mesmo.

- Saiba que hoje os portadores do vírus têm uma qualidade de vida tão boa que nem é mais possível identificá-los. Os sintomas demoram anos, às vezes até décadas para aparecer.

- Isso é para me acalmar ou me alarmar?

- Isso é para você aprender duas coisas: é muito importante a precaução em todas as modalidades de sexo e não podemos julgar ninguém pela aparência, seja qual for. Ah, que bom, já deu o tempo, olha aqui o seu resultado: negativíssimo em ambos os testes.

- Doutora, que bom que eu vim aqui! Ia gastar uma nota com o teste em um laboratório.

- Que iria demorar pelo menos três dias úteis e não daria esse aconselhamento psicológico, totalmente necessário em testes de HIV.

- Muito obrigado, viu, Dra. Elisa!

- Só estou fazendo o meu trabalho. E, apenas para constar, meu nome é Rosana. Elisa é o nome do teste.

Na saída, mais aliviada, Aracy abraçou Cris, agradecendo pelo suporte.

- Obrigado! Como você sabia desse lugar?

- O Charles me trouxe aqui quando começamos a namorar.

- Ai, que esquisito. Chamar para fazer teste de AIDS deve acabar com o romance.

- Eu achei muito estranho na hora, mas hoje acho que foi a coisa mais romântica que fizemos juntos. Sabe, assim ficamos ambos tranquilos. Parceria é isso, né?

- Sim, Cris. Parceria é poder confiar algo tão sério assim com alguém. Obrigada pela amizade!

- De nada. Mas, só para garantir, enquanto você se aconselhava eu dei um pulo ali na farmácia e comprei estes presentes.

- Ai, camisinhas de caramelo, maçã-verde e marrom-glacê? Só você para achar um troço desses!

- As de avelã com coco são minhas, tá, que ninguém me obriga a compartilhar!

3 comentários:

Chris, The Red disse...

Adorei o texto, Digo. Informativo e humorado. Que pena que ainda existam empresas como a tal que se negou a publicar por causa do texto. Gostaria muito de saber que empresa foi essa, com certeza, deixaria de comprar os produtos dela caso eu seja um usuário. Empresa com esta mentalidade, não merece meu rico dinheirinho rosa.
Beijão e parabéns mais uma vez.

BlackCat disse...

Pow pena pela parte da censura, mas é como acontece né...o bom é que isso é história de gente que futuramente fará sucesso sabia?! aquelas histórias tipo "Rodrigo Checchia diz que já foi censurado! saiba mais na pág 342."
hahaha o bom disso é que vai voltar a escrever aqui! huuuuuuu abrass!

Kalu disse...

Digo, o texto est[a excelente. O anunciante pode ter for;a, mas a grande vilã é a idealizadora da Revista Young. Como ex-editora peço desculpas por ter lhe convidado para este barco furado. Ela quem abriu as pernas e deixou que a grana falasse mais que sua ideologia. Aliás, não recebi pelo meu trabalho nesta revista, mesmo me oferecendo para trabalhar de graça. Acho que o medo é de se chocar com a ideologia mais vaiosa que a grana.