27 de jul. de 2008

Coadjuvante

Elisângela concentrou toda sua experiência em eventos para fazer o mais importante deles: seu próprio casamento. E em sua empolgação natural a todas a moças prestes a concretizar o matrimônio, não falava de outra coisa.

Sempre que indagada sobre qualquer assunto, respondia:

- Depende. De que cor são, qual o material utilizado e qual sua sugestão de disposição no prato?

- Mas eu só perguntei se a senhorita quer que o hambúrguer venha acompanhado de fritas!

Não que fosse alheia à realidade. Elisângela só queria tudo perfeito. Assim que a aliança encaixou-se em seu dedo, vislumbrou a possibilidade de usar para si o conhecimento que tornara realidade os festejos de tantos clientes.

Dona de um gosto pelo clássico, escolheu uma igreja sem muitos adornos e deu duas instruções ao decorador: tons pastéis e ousadia comedida. Não que não houvesse audácia no seu trabalho do dia-a-dia, mas a ocasião exigia uma solenidade para ficar marcada na história.

Imagine então qual foi o embate quando uma segunda noiva, a Márcia Rosana, agendou suas bodas no mesmo dia, sendo obrigadas a dividir as despesas e, portanto, as idéias sobre a decoração.

- Gosto que tenha bastante enfeite - declarou Márcia Rosana de cara. Quero tudo bem cheio, bem brilhante, bem colorido! No dia, vou pintar as unhas de vermelho e quero combinar a igreja com elas!

- E mais o quê, samambaias enfeitando o altar?

Para piorar, os candidatos a marido não se envolviam nas decisões e deixavam que as nubentes decidissem tudo sozinhas. Depois da primeira reunião, na qual Elisângela expôs seu descontentamento com o, digamos, gosto de Márcia, pensaram em colocá-las dentro de uma redoma e promover apostas na ‘rinha de noivas’ como maneira de arrecadar fundos para a lua-de-mel. Nenhuma das duas cedia às idéias da outra.

- Márcia, só falta você me dizer que quer que o tapete seja rosa-choque.

- E tem dessa cor, Reinaldo?

O decorador consentiu com a cabeça, mas depois receou ter algum membro amputado por Elisângela com os dentes e desconversou.

Para espairecer do pesadelo de talvez casar com o altar enfeitado com canecas de chope, reservou para si mesma um dia longe de todos, em um desfile de vestidos de noiva. Seu noivo, Caio, não poderia mesmo ver, pois, além de dar má sorte, seria a grande surpresa para ele, mesmo que estivesse mais interessado nela despida.

Elisângela rumou ao mundo underground da indústria casamenteira para conferir os modelos atuais de vestido. Logo que chegou, procurou por um bom lugar, mas estava muito lotado. Avistou uma cadeira vaga bem na frente da passarela, ao lado de um rapaz, o que lhe chamou a atenção pois quase não havia homens no local. Sentou-se ao lado dele. O jovem, que vestia camiseta e jeans, mais uma echarpe furta-cor no pescoço quebrando um pouco a monotonia do visual, segurava um bloco de notas e parecia enfadado.

Não demorou para que duas moças se aproximassem de ambos e dissessem:

- Acho que vocês estão nos nossos lugares. Essas cadeiras estavam reservadas.

Mais rápido do que Elisângela, o que era admirável, o moço se manifestou, movendo apenas a boca e uma sobrancelha, sem olhar para nenhuma das duas:

- Desinfetem. Somos da imprensa.

Proferiu com tamanha convicção que as duas foram lá para trás. E não sentaram durante o desfile inteiro.

Não era sempre que ela puxava conversa com desconhecidos, mas achou pertinente, pois se identificara com aquela postura.

- Mas que ousadia, né? Chegamos aqui primeiro.

- Querida, para alguém me tirar do lugar que escolhi seria preciso uma ordem judicial, um guindaste e mais ou menos vinte horas de trabalho contínuo.

Não era qualquer um que conseguia penetrar no estreito círculo de amizades da noiva.

- Muito prazer, eu sou Elisângela. Organizadora de eventos e noiva histérica.

- Carlos Charles. Repórter e avesso a casamentos.

Seu nome havia sido uma brincadeira da mãe, até hoje ainda não–assimilada pelo pai, que o registrara assim mesmo. Carlos escrevia matérias como free lancer para várias publicações de moda. Estava ali para um especial de maio de um conhecido website. Alguém achou que seria muito criativo produzir reportagens sobre casamento naquele mês.

Revelou-se uma companhia extremamente agradável o desfile todo, dando sua impressão sobre os modelos.

- O que você acha daquele?

- Acho ótimo. Parece que a noiva está tão desesperada para consumar o matrimônio que já chega na porta da igreja de camisola.

- E aquele que vem ali?

- Ah, aquele sim tem um estilo mais tradicional. Pena que confundiram e colocaram na noiva, porque curto assim deve ser o vestido da daminha de honra, né?

Os dois riram de tudo e de todos os modelos. Mas não houve um sequer que balançasse o coração de Elisângela. Aquele vestido que diz ‘é comigo que você vai casar’ não estava ali.

- Vamos tomar um capuccino?

- Mas, agora, Carlos? Pelo que eu vi da programação, vão mostrar os figurinos para o noivo também.

- Mon cher, e quem é que liga para o Oscar de coadjuvante? O noivo pode vestir até um abadá de carnaval da Bahia que ninguém vai reparar. A estrela do dia será você. E vamos já para o café!

Entre um gole de leite aromatizado de baunilha e outro, Carlos Charles ouviu as lamúrias de Elisângela. Sobre o descaso do noivo, para quem os conceitos ‘harmonizar’ ou ‘combinar’ pareciam grego, e, acima de tudo, sobre as vontades de Márcia Rosana de colocar o maior número de elementos possíveis no trajeto da porta até o altar.

- Ela quer torres de água cheias de pétalas, purpurinas e lantejoulas ao lado de cada banco!

Carlos parecia distante, mas estava estranhamente interessado naquela história. Talvez valesse a pena para escrever uma matéria depois? Quem sabe. A personagem era forte.

- Eu não faço isso para qualquer uma, mas gostei de você. Vamos resolver tudo.

Elisângela, que até ali havia apenas se desabafado com o estranho, não estava acostumada a receber instruções e sim dá-las, mas, por curiosidade, decidiu dar ouvidos ao jornalista.

- O vestido em primeiro lugar. Pegue este cartão, ligue e diga que é minha amiga.

- Espere, mas este é o número do...

- Sim, ele mesmo, mas não diga o nome alto, senão todas as mulheres num raio de vinte quilômetros irão pular nesse cartão.

- Mas ele é super recluso e não aceita pedidos específicos por dinheiro nenhum.

- Se houver resistência, diga apenas: “berinjela no microondas”.

- Isso é alguma senha?

- Não, é um segredo particular dele que será publicado em vários sites de fofocas se ele não fizer o que eu quero. Só não conto o que é, muito menos como eu descobri, porque teria que matá-la na seqüência. Talvez ele nem cobre para desenhar o seu vestido. Está bom assim?

- Muito! Você não quer assumir o lugar do noivo? Talvez ele fique vago – brincou, enquanto anotava “berinjela” no cartão.

- Só se eu puder usar um vestido também - zombou de volta. Agora, quanto à outra noiva, já sei o que fazer.

- O que é?

- Vou resolver, mas terá um preço, não muito alto. Confia em mim?

O primeiro instinto de Elisângela foi dizer que haviam acabado de se conhecer e, por isso, não. O segundo foi olhar novamente para a echarpe furta-cor e consentir:

- Confio!

- Ótimo, então, passe o contato do decorador e deixe comigo.

21 de jul. de 2008

Verde-limão

Se soubesse tudo que estaria por vir, o Caio provavelmente não teria optado por fazer uma cerimônia de casamento tradicional. Um mês depois de conhecer a mulher de sua vida na porta de uma danceteria, a Elisângela, e muitos encontros casuais - forjados por amigos em comum que enxergavam o quanto se completavam -, decidiu fazer a proposta.

Certo de que a garota merecia uma solenidade à sua altura, convidou os pais de ambos para um jantar num dos melhores restaurantes da cidade e mostrou o par de alianças na hora da sobremesa. Elisângela sorriu e terminou a banana split antes de experimentar – Caio acertara o tamanho exato do seu anular! Os garçons mais tarde comentaram entre si que os pais da moça sorriam não apenas de felicidade, mas de um certo alívio. Provavelmente, por terem encontrado um genro tão bacana. Que outra opção haveria para não terem ainda casado uma filha tão bonita?

Na manhã seguinte, Elisângela apresentou a Caio um de seus maiores tesouros, que chamava de ‘O livro fazedor de sonhos’. Como organizadora de eventos, mantinha um caderno forrado com cetim dourado no qual listava fornecedores de decoração, serviços de catering (‘buffet é um conceito ultrapassado’, dizia), iluminadores e até tradutores simultâneos.

- Mas antes de pensarmos nisso não é melhor escolher a data? Sugeriu Caio.

- A data é o de menos. Eu caso quando o Reinaldo estiver disponível.

- E quem é Reinaldo? - Indagou Caio, imaginando se haveria outro noivo no dia.

- O único decorador em que eu confio para o meu casamento.

No fim o Reinaldo teria mais influência sobre o que preencheria igreja e salão, para alívio do Caio, cuja noção de decoração resumia-se a atualizar o pôster do seu time sobre a cabeceira da cama.

Não tardou para que amigos, parentes e conhecidos começassem a dar suas sugestões.

- A igreja do meu bairro é linda! Tem vitrais simulando o teto da Capela Sistina, mas na vertical!

- O Buffet que eu me casei, há 30 anos, é perfeito! E eles haviam acabado de pintar na época, ainda deve estar lindo!

Pressentindo que poderia ter atritos, Elisângela reuniu pais e sogros num almoço de domingo e buscou as palavras certas para deixar claro que não queria palpites em seu casamento:

- Eu não quero palpites no meu casamento.

Levantou uma das sobrancelhas e acrescentou, num tom amistoso:

- Fui clara ou preciso ser mais específica?

Claro, respeitaria a opinião do noivo, até porque, sabia que ele iria pagar sua parte da festa. Mas este mesmo conceito foi abalado no dia da escolha das fitas para o bem-casado.

- Caio, decidi que será verde, mas você pode me ajudar a escolher o tom.

- Tom?

- Sim, o tom. Qual você gosta mais?

E a vendedora espalhou uma série de fitas com várias tonalidades de verde sobre o balcão.

- Mas qual a diferença entre eles?

Elisângela suspirou tão fundo que as fitas voaram todas e a atendente correu a reposicioná-las.

- Veja, há nuances diferentes entre as cores. Existe o verde-musgo, o verde-esmeralda, verde-mar, verde-exército, verde-limão...

- Ah, verde-limão é bonito! Pode ser?

- Verde-limão?

- Ué, qual o problema com o limão?

- Caso você não tenha reparado, os anos oitenta acabaram na noite de 31 de dezembro de 1989... Você colocaria esta fita fosforescente nos nossos bem-casados?

- Mas isso é verde-limão?

- Claro!

- Só se for onde você mora... Na feira lá do meu bairro não tem nenhum limão dessa cor...

Na mesma noite, a mãe consolava Elisângela:

- Calma, filha, os homens são assim mesmo.

- Daltônicos? Ainda bem que tenho o Reinaldo na minha vida! Já marquei a primeira reunião para amanhã.

O que a noiva criada no Itaim não sabia era que haveria mais alguém presente. Chegando com mais de uma hora de atraso (ensinar caminhos não era seu forte), Elisângela e Caio encontraram Reinaldo conversando com outro casal.

- Mas que audácia, ele está atendendo outras pessoas no nosso horário!

- Nosso horário com ele acabou tem 15 minutos...

- Isso não importa – bradou a filha única. Ele tinha que ter nos aguardado! Como eu iria saber que naquela avenida existem dois sentidos?

- Ah, Elisângela, querida, que bom que você chegou bem a tempo de conhecer a outra noiva! Estamos discutindo a decoração de vocês.

Sim, havia outra noiva agendada para o mesmo dia na igreja e Elisângela teria que decidir em conjunto sobre a disposição dos arranjos e todos os elementos para ornamentar a nave.

- Prazer, meu nome é Márcia Rosana. Nossa, como você é linda!

“Pelo menos, começamos bem” – pensou Elisângela.

- Estou aqui tentando convencer o Reinaldo a usarmos flores de plástico, que não murcham e o pessoal pode levar para casa de lembrança, mas ele não quer. Vê se me ajuda, amiga!

“Agora, fodeu de vez”.

14 de jul. de 2008

A noiva do Itaim

Você nunca reconhece uma noiva do Itaim de longe. Em primeiro lugar, é preciso estabelecer que as noivas do Itaim não se parecem com noivas. Não, elas não andam de véu e grinalda nem carregam buquês em plena terça-feira.
Tampouco dão a entender que estão finalmente desencalhando. Até porque, para a noiva do Itaim, o casamento é uma passagem natural, mas que deve ter o cerimonial adequado.
O que tampouco significa que seja fácil a transição de uma moça em uma noiva do Itaim.
Como a Elisângela. Filha de um casal de suecos que encontrou no bairro um refúgio agradável e relativamente perto da região central da cidade, foi batizada em homenagem a duas cantoras brasileiras, pois o pai não queria que se sentisse deslocada no país. Mas isso Elisângela nega até hoje.
A garota já nasceu com bom gosto. Na maternidade, chorou até que a manta fosse trocada por uma que combinasse com seus olhos azuis. Aí, tornou-se o bebê mais tranqüilo do berçário.
Na escola, aprendeu primeiro a colocar os blocos em ordem de cores, formando um degradê harmonioso, antes de compreender que o quadrado encaixa no quadrado e o redondo, no redondo.
Mas não era dislexia. Elisângela queria apenas ver o mundo mais bonito, à sua maneira. Estudou nos melhores colégios, mas ganhou fluência em francês lendo a Vogue de Paris. Não prestou atenção a uma única palavra dos professores, ocupada fazendo análises sobre como o guarda-pó seria mais elegante se trouxesse elementos adicionais quebrando a monotonia do branco-giz.
Naturalmente, a vida a levou a uma carreira de organizadora de eventos. O pulso forte com que comandava seus funcionários levava suas cerimônias ao status de perfeição.
No amor, entretanto, nem sempre foi fácil para Elisângela se relacionar com o mundo masculino. Testosterona, falta de senso estético e, principalmente, desconhecimento acerca do mundo da moda, afastavam qualquer possibilidade de um relacionamento mais duradouro.
Certa de que sua vida estaria fadada a ser solitária e que jamais seria uma noiva, aproveitou a vida o quanto pôde, sem se preocupar com o fato. Mal sabia que a chave para encontrar seu companheiro estava precisamente na sua auto-suficiência.
Sim, pois as noivas do Itaim não são desesperadas para casar. São plenamente cientes de que só aceitarão como companheiros quem ousar realmente conquistar seus corações. O de Elisângela, inalcançável, oferecia pouca chance a este acaso.
A vida social tornou-se então um refúgio. Ser e acontecer, com comedimento, era essencial para a garota.
De que adiantava ser bonita se ninguém a visse?
Por onde quer que passasse, despertava interesse, provocava comentários, de canto de boca e alardeados. Não importa o que vestisse, Elisângela fazia com que tudo que caísse sobre seu corpo se mostrasse mais atraente, mais jeitoso, mais charmoso. Claro, ela conhecia as marcas de grife à distância, mas sustentava o estilo mesmo em suas peças mais simples, adquiridas até em lojas do centro da cidade. Uma princesa inatingível.
Numa dessas ocasiões, que só o destino sabe fazer acontecer, estava a descer do carro quando um outro motorista sentiu-se compelido a comunicar tudo que ela despertava nele. Naturalmente, não havia muito tempo para uma longa explanação acerca da beleza das fêmeas, dos hormônios que atuam na libido e de como a reprodução é necessária para a manutenção da vida da espécie humana no planeta Terra, por isso foi obrigado a resumir com a frase:
- Estou com vontade de te lamber todinha!
Ao que Elisângela, sempre dona da situação, precisou responder com a mesma desenvoltura e todo seu porte nobre. Quis deixar claro que aquela abordagem não era adequada a uma dama e que evidenciava um certo desleixo com a forma que não a atrairia a um possível envolvimento emocional. Foi sucinta, mas enérgica:
- Enfia o dedo no cu que passa.
Com seu tiro no escuro, Elisângela acabou acertando dois alvos: o motorista-babaca e também o Caio. Que estava na calçada aguardando para entrar na boate, tão embasbacado com sua beleza que seus ouvidos filtraram a mensagem até que só ouvisse um “Sou uma mulher sem par, destinada a alguém igualmente especial”.
Sem saber, Elisângela havia acabado de se tornar a mais recente noiva do Itaim. A confirmação oficial viria em semanas, mas o coração do (pobre) Caio já estava tomado.