27 de mai. de 2009

Anticorpos

A culinária é a única arte que implica na destruição da obra. Não há como saborear um prato sem, literalmente, devorá-lo. No caso da cozinha experimental de Karmem, a regra valia também para a cozinha em si, utensílios e ingredientes.

- Eu adoro cozinhar! Sou praticamente uma racha-cuca!

- Mestre-cuca, Karmem, mestre-cuca.

O processo de cozinhar para Karmem seguia 10 passos:

Passo 1 – Escolher uma receita pela internet;

Passo 2 – Enviar a lista de ingredientes para eu comprar;

Passo 3 – Me convencer a rodar a cidade atrás de ingredientes exóticos que a gente mal sabia usar;

Passo 4 – Avisar, depois que estivesse tudo comprado, que viriam mais cinquenta pessoas e me despachar novamente para o mercado, já que a quantidade não seria suficiente;

Passo 5 – Chamar as cinquenta pessoas;

Passo 6 – Brigar comigo porque não decorei nem imprimi a receita;

Passo 7 – Ir ao cabeleireiro, ao shopping, à academia e à farmácia enquanto eu cozinhava tudo;

Passo 8 – Voltar para casa e me dizer que não ficou igual à foto que estava no site;

Passo 9 – Avisar que as cinquenta pessoas não puderam vir e ouvir de mim palavras de consolo e de como todo mundo deve ter tido um problema muito grave para não comparecer a uma reunião breve em casa de amigos organizada por ela, mas que ela continuava, sim, muito popular e querida por todos;

Passo 10 – Comer e esperar que eu elogiasse suas aptidões culinárias.

Naquela tarde, ela havia decidido fazer um frango na cerveja. Já estávamos no passo nº 8 quando ela chegou da farmácia e, além de dizer que não ficou igual à foto, ainda achou, pelo cheiro, que o tempero não estava bom. Karmem, tal qual os cães, preferia guiar-se pelo faro em detrimento dos outros sentidos, como a visão ou audição.

- Deixa eu tirar essa assadeira e colocar mais tempero, que eu aposto que está fraco.

- Tá bom, Gongunhinha. Olha aqui a luva térmica para você não se machucar.

Como eu disse, Karmem não utilizava a audição para se guiar. Foi quando tirou o frango para fora, segurando a assadeira só pela pontinha e sem luvas, que ela gritou:

- Ai! Está queimando a minha mãozinha! Seu monstro, por que você me deixou pegar nessa assadeira quente? Você devia ter tirado isso daí sozinho! Seu insensível! Aposto que fez de propósito! Você não temperou o frango direito só para eu enfiar minha mão nessa coisa pelando! Vai ficar marca! Nunca mais vai sair! E o frango ainda está sem tempero!

A essa altura, as partes do frango estavam todas esparramadas pelo chão até da lavanderia. Foi prático, porque, como choque térmico do assoalho, os ingredientes esfriaram e deu para Karmem passar o dedo no tempero que havia derramado no chão e sentir se estava bom ou não.

- Karmem, desculpe! Mas e agora? A gente vai ter que jogar tudo fora...

- Ué, por quê?

- Como, por quê? Caiu no chão! Tem cachorro nessa casa, a gente entra aqui com o sapato que veio da rua...

- E daí? O que te leva a crer que a assadeira estava mais limpa que o chão? Esqueceu que estamos na minha cozinha?

Essa era uma vantagem de se comer sempre na casa de Karmem: não importava o restaurante que frequentássemos, a cozinha jamais teria menos condições de higiene que a de Karmem. A fôrma em questão nunca havia sido lavada; era a de salgados, então, como só assava comida salgada, não havia motivos para lavar.

E lá se foi o frango de volta ao forno (com o tempero adicionado).

- Bombolico, você vira o franguinho para mim? Tem que assar dos dois lados.

- Claro!

Sim, eu tinha um pouco mais de discernimento que Karmem e fui pegar o frango com luvas e panos de prato intercalados – molhados e secos – de forma a criar um total isolamento térmico entre minha mão e o metal aquecido.

Tanto zelo fez com que eu simplesmente não tivesse a mínima sensação tátil em relação ao assado. E lá foi a pobre ave desmembrada pro chão outra vez! No rádio, Lulu Santos cantava “Nós fomos feitos um pro outro... Pode crer...”.

Depois de recolher tudo de volta (novamente) ao forno, chamamos a cadelinha da família que se apressou em lamber tudo para não deixar rastro do que havia acontecido.

O resultado foi uma delícia culinária! Havia tantos vestígios de alimentos derramados há anos no chão que lá já cresciam ervas e fungos que deram um toque especial à receita.

E, desde esse dia, Karmem adicionou na receita: “esfregar as partes da ave no chão da cozinha durante o período de cozimento”.

Um comentário:

BlackCat disse...

hahahahaha gostei dos 10 passos para a culinária de Karmen! mas a frase "O que te leva a crer que a assadeira estava mais limpa que o chão?" me fez surtar!!! nojo+risos!!!