- Canta!
- Mas eu estou no meio do trabalho...
Não era um pedido, era uma ordem. O objetivo, claro, não era apreciar minhas (inexistentes) aptidões para a cantoria, mas me causar embaraço.
- Ah, vai, eu quero...
- Tenho que desligar.
- Você vai desligar na minha carinha?
- Não, é que tem uma ligação aqui para mim.
- E como você sabe?
- A menina da recepção está acenando para mim. Ai, pronto, ela anotou o recado.
- Então canta.
- Agora? Eu canto à noite, quando encontrar com você, pode ser?
- Não! à noite já vai ter passado minha vontade de te ouvir cantar. Tem que ser agora!
Ela tinha o poder de me fazer perder a noção do ridículo.
- E que música você quer?
- Você vai ter que adivinhar!
- Karmem, eu estou trabalhando, o escritório está cheio de pessoas me olhando nesse exato minuto - retruquei, baixinho.
- E daí? Só uma musiquinha, vai.
- Então fala qual você quer.
- Não vou falar e você tem que cantar a canção certa!
- Tá bom, vai aquela da 'Cabeça, ombro, perna e pé', pode ser?
- Pode!
- Cabeça, ombro, perna e pé...
- Tá muito baixo.
- Karmem, já estou passando a maior vergonha aqui.
- Então canta de uma vez com convicção para acabar logo.
- Cabeça, ombro, perna e pé, perna e pé!
- Aposto que você não está fazendo os gestos!
- Tem que fazer?
- Claro! Que graça que tem se você não fizer? Aliás, só deixei cantar essa música, que não foi a que eu escolhi, porque tem a coreografia.
- Tá, vamos lá. Cabeça...
- Você não está fazendo!
- Estou, sim!
- Não tá não!
- Ok, não estava. Mas vou fazer agora.
- E canta alto, que eu quero sentir animação.
- Cabeça, ombro, perna e pé, perna e pé!
- Não vale.
- Por que não vale?
- Você está sentado na cadeira, tem que ser de pé.
- Karmem...
- Tem que ser de pé!
Levantei e comecei:
- Cabeça, ombro, perna e pé, perna e pé! Cabeça, ombro, perna e pé, perna e pé! Olhos, orelhas, boca e nariz. Cabeça, ombro, perna e pé, perna e pé!
No escritório, todos me olhavam. Do outro lado da linha, Karmem ria histericamente.
- Não acredito que você fez isso!
- Ué, não foi o que você me pediu, Karmem?
- Foi, mas o que que vão pensar de você aí agora? Credo, como você é louco!
- Posso desligar agora?
- Aí, tá vendo, quer desligar na minha cara. Você não gosta de falar comigo.
- Gosto, sim, não diga isso.
- Então me canta a musiquinha de ficar feliz.
- Karmem?!?
- Vai, aquela. Você sabe qual. Porque eu fiquei tristinha de saber que você não gosta de falar comigo e preciso voltar a ser feliz.
- Mas eu adoro falar com você.
- Então me mostra!
Como não havia jeito mesmo, dei vazão à loucura:
- Para ser feliz é preciso ter, esse céu azul e a imensidão...
Karmem ria tanto que não pode continuar falando ao telefone.
- Deixa eu desligar, porque estou trabalhando. Meu serviço é sério, não podem me ver gargalhando como uma doida no telefone, né?
- Mas...
- Tchau!
17 de fev. de 2009
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