15 de ago. de 2011

A arte da invisibilidade


Sempre suspeitei do treinamento ninja de Karmem. Embora ela jamais tenha me confidenciado, apenas um longo período entre especialistas explicaria algumas de suas habilidades.
Como por exemplo a capacidade de ficar invisível. Karmem desaparecia sorrateiramente como uma sombra. Claro, no caso, parar de falar aos quatro ventos já poderia ser considerado silêncio.
Bastava Karmem sair de meu campo de visão para procurar, sorrateira e silenciosa, por um esconderijo. Ou escavar um na terra batida, usando uma pazinha de sorvete, por exemplo.
- Eu queria cinco esfirras de carne, mais quatro de queijo, dois quibes e duas Cocas.
- Nossa, o senhor está faminto, hein?
- Não é só para mim, minha namorada aqui atrás vai comer também.
- Namorada?
Olhei para trás na fila do fast-food e vi apenas uma senhora de óculos de aro de tartaruga tentando ler o cardápio.
Onde estava Karmem?
- Você não viu uma garota atrás de mim, aqui na fila?
- Não, mas agora já re'z'istrei o pedido. O senhor tem que pagar.
Mantive a expressão serena. Não era o primeiro (nem o último) sumiço de Karmem.
Ela certamente devia estar atrás de alguma pilastra. Ou de alguém mais gordinho. Ou atrás de mim!
Já havia encontrado Karmem refugiada em armários (da cozinha), debaixo de móveis, dentro da cozinha de restaurantes e em salas de cirurgia (com operações em andamento). Nenhum lugar naquele shopping seria surpresa.
Por isso peguei o pedido e fui calmamente para a mesa. Comecei a comer, quando vi Karmem se esgueirando para fora da lata do lixo, com alguns canudinhos presos no cabelo.
O alívio durou apenas o tempo de vê-la correndo embora da praça de alimentação.
Como em todas as suas esquisitices, calculei que seria preferencial não questionar.
Para não estimular. Menos de dez minutos depois, ouvi pelo sistema de som do estabelecimento:
- Atenção, senhores visitantes. Encontra-se na sala de atendimento ao cliente uma moça, aparentando ter seus vinte e poucos anos, cheirando a lixo e balbuciando sons sem sentido ou alguma língua do oriente que não conseguimos entender. Pedimos a gentileza de que seus acompanhantes venham retirá-la para que possamos dar continuidade aos nossos serviços.
Podia ser outra pessoa, né? Não dei bola, até que a voz voltou.
- Apenas para deixar registrado, ela já chegou aqui com os canudos enroscados em seus cabelos,não fomos nós que os colocamos. Senhorita, não, o microfone é de uso exclusivo dos funcionários do shopping. Senhorita, não pode falar aí!
- Eu ão aeio e oê oi eoa! ao eu e aa, ou eia oo ee auo o oo o eu ao!
Karmem não usava as consoantes em situações de fúria. Ou de sono. Ou de fome.
Reagi como qualquer namorado carinhoso que conhecesse sua garota poderia ter feito: comi todos os salgados. E bebi as Cocas. Finalmente, fui até a sala de atendimento, onde Karmem chorava sentada em um banco. Aparentemente, tudo estava normal. No normal dela, claro!
- eu uo, e oaão! oi eoa e e aou ai, a ieira!
- Karmem, por favor, com as consoantes...
- Seu bruto, sem coração! Foi embora e me largou ali, na lixeira!
- Mas eu estava ali, comendo! Você não viu?
- Aquele gordo se empanturrando de quibes era você?
- Sim, o gordo era eu. Quer dizer, sim, era eu.
- E como eu ia saber? Estava olhando de longe! Você devia ter acenado!
- Olha, vamos embora? O metrô já esta quase fechando...
Pelo menos, eu teria algum tempo até Karmem resolver fazer a brincadeira do desaparecimento de novo.
Como o tempo de eu chegar na bilheteria, pedir as passagens do metrô e virar para entregar a dela.
- Aqui está, Kar... Karmem? KAAARRRMEEEEM!